*Bruno Varella
O fenômeno pode ser encontrado em qualquer página da Internet: uma notícia é publicada e, minutos depois, dezenas de comentários surgem. Em muitos deles, o tom é semelhante: respostas raivosas, quando não mal educadas. Por sorte esse não é o caso em nossa coluna, marcada pela civilidade nas postagens e pelo debate de ideias, mas quem já não se viu lendo os desaforos postados após a mais banal das notícias? O câncer do ex presidente Lula constitui apenas um exemplo entre os muitos que aqui poderiam ser citados. Seja para debater a corrupção, o conflito entre Israel e Palestina ou uma partida qualquer do campeonato paulista de futebol, não raramente a falta de respeito ao próximo é a regra.
De muitas maneiras, esses inúmeros comentários nos ajudam a refletir sobre questões mais amplas. Aqui queremos chamar a atenção para um aspecto específico: a influência do anonimato nas ações dos humanos. Ninguém nega que a Internet nos beneficia de diversas maneiras, e, entre mortos e feridos, acreditamos que é melhor que haja um espaço em que todos sejam livres para se expressar da forma que consideram a mais adequada. O que muitos não percebem, porém, é que muito antes da invenção dessa ferramenta já expressávamos nossas opiniões amparados no anonimato. É assim que agimos, por exemplo, quando vamos ao supermercado e decidimos o que vamos comprar.
Por que esperar, então, que humanos, muitas vezes incapazes de enxergar a validade na opinião de seus pares, comprariam um produto porque essa decisão beneficiaria a coletividade? Essa é uma questão mais complexa do que imaginamos a princípio. A própria teoria econômica, ao reconhecer que os agentes buscarão o menor preço quando isso não afetar a sua satisfação, nos fornece pistas acerca dessa realidade. Chega a ser irônico que tantas análises deleguem para esses mesmos mercados, e, consequentemente, para a ação dos seus participantes, a capacidade de lidar com problemas complexos como o trabalho em condições precárias ou o aquecimento global.
O primeiro erro cometido por essa linha de raciocínio reside no próprio uso da palavra “mercado”. Cheia de significados e, ao mesmo tempo, vazia, o termo abarca uma enorme diversidade de construções sociais e institucionais. Por isso, a sua utilização descuidada apenas confunde, ao invés de esclarecer. Outra imprecisão comum é a oposição entre as “forças do mercado”, por um lado, e a “intervenção do Estado”. Afinal, não existe no mundo mercado que não seja regulado, ou, em outras palavras, sofra de alguma maneira a influência de outros ordenamentos sociais.
Finalmente, muitas vezes adota-se uma visão exclusivamente benigna do ser humano, racional e guiado por um senso claro de justiça, o que apenas contribui para maiores desvios. Embora não seja novidade para ninguém que muitas empresas ainda garantem os seus baixos preços por meio da utilização de mão de obra em condições precárias, não vemos muitos consumidores questionando essa realidade diariamente. Por que esperar, assim, que a adaptação dos seus costumes irá ocorrer exatamente a tempo de evitar que as mudanças climáticas sejam contidas em um estágio tolerável para os humanos sem qualquer “empurrão” de outros ordenamentos sociais?
Por tudo isso, a ideia de que a ação independente de milhões de pessoas, seguindo os seus instintos, levará a soluções ótimas para os mais variados problemas – para muitos profetas, para todos eles – não deveria ser levada tão a sério. Chama a atenção, por sinal, a força que essa conclusão possui em determinados círculos acadêmicos e sociais. Talvez porque o outro extremo, o do controle estrito das escolhas dos cidadãos, tenha se mostrado ainda mais desastroso, a defesa acrítica desse mundo ideal conte com tantos defensores. Faz falta no mundo atual um número maior de pessoas que nos lembrem que, por trás de nosso “anonimato”, há responsabilidades das quais não deveríamos fugir, e ordenamentos sociais que deveriam cuidar da construção desses consensos.
Obviamente, a utilidade dos mercados impessoais é inegável. De fato, sem a sua existência, não teríamos sido capazes de gerar tamanha riqueza em nossas sociedades, tampouco explorar de forma eficaz os benefícios derivados da divisão do trabalho. Devemos estar conscientes, porém, de que, como qualquer outro ordenamento social, estes possuem limitações claras. Ademais, são o resultado daqueles que os constrõem ou participam de sua rotina. Se queremos construir um “mundo melhor”, qualquer que seja esse mundo, não deveríamos confiar tanto nas formas inatas do acaso. A história tem nos mostrado que, via de regra, o acaso só leva a bons resultados do ponto de vista social quando os humanos são capazes de construir uma estrutura adequada para a sua ação cotidiana.
*Sylvia Saes - Professora do Departamento de Administração da USP e coordenadora do Center for Organization Studies (CORS)
*Bruno Varella Miranda- Mestre em Administração pela USP