*Bruno Varella
O “tema da moda”, quando a intenção é discutir política, é a decisão do governo da Argentina de expropriar a YPF, gigante petrolífera local. É comum a defesa de posições apaixonadas, seja de respeito pela soberania argentina ou pelo projeto econômico da equipe de Cristina Kirchner, seja pela defesa incondicional dos direitos de propriedade. De repente, é como se nessa história só houvesse espaço para um bandido e um mocinho. Que nos perdoem os que pensam assim, mas a realidade é bem mais complexa em nossa opinião.
Em primeiro lugar, as opiniões que colocam a Repsol, antiga dona da YPF, como a “coitadinha” da história, deveriam buscar entender a essência da atuação de qualquer empresa no sistema capitalista. Longe de pensar no bem da sociedade, o que as organizações buscam é a maximização do lucro, dentro dos limites impostos pelas instituições. Não há nada de errado nisso; pelo contrário. Agora, não dá pra chamarmos a Repsol de vítima da história, dado que ela ganhou muito com a instabilidade institucional argentina até perder o controle da YPF.
A Repsol, beneficiada pelo processo de privatização impulsionado pelo governo de Carlos Menem, jogou de acordo com as regras conjunturais argentinas por mais de uma década. Chegou, inclusive, a aceitar um sócio argentino sob condições no mínimo estranhas; a ideia de Néstor Kirchner de permitir que a família Eskenazi entrasse na YPF pagando a sua parte com os próprios dividendos da empresa tinha tudo para dar errado. A Repsol, porém, não é obrigada a militar por uma política energética racional em cada lugar que atua. Não por acaso, foi jogando da forma que dava, e colhendo os lucros que dava, até que veio o golpe final.
O governo argentino tampouco pode ser visto como o “coitadinho”. A expropriação da YPF representa a prova principal do fracasso da política energética do país esboçada pelo casal Kirchner, com a ajuda de colaboradores como Julio de Vido. Se o país atualmente importa quantidades crescentes de petróleo, é porque o governo não foi capaz de estabelecer uma estratégia de longo prazo para o setor. Em meio a subsídios e controles de preço, problemas eram esperados. Ademais, o governo da Argentina na atualidade é viciado no controle de qualquer “cofre” que encontrar pela frente, utilizando esses recursos para fazer política. Foi assim com os fundos de pensão, com as reservas do Banco Central e deverá ser assim com a YPF. É o alto preço de um modelo que compra estabilidade momentânea com um amplo controle do governo central sobre a economia e as outras esferas do poder nacional.
Por isso, a discussão de temas como o significado da expropriação da YPF exige um olhar que vá além dos atores envolvidos. Analisar esse caso significa ir além da decisão final, entendendo os caminhos que levaram à consolidação do desfecho. Esqueçamos a ganância das empresas ou a prepotência dos políticos. Ao fazermos isso, veremos que o problema não está necessariamente na expropriação. O que torna o exemplo da YPF emblemático é a forma como o governo argentino decidiu expropriar a empresa. Embora as leis locais previssem uma série de procedimentos para tal decisão, a opção foi por uma retomada pirotécnica, na sombra das leis. Em outras palavras, caso tivesse sido feita em respeito à Constituição, não haveria problema algum na expropriação. A instabilidade não está na decisão do governo de expropriar uma empresa, e sim na recusa de seguir os dispositivos legais existentes.
É preciso lembrar que, ao longo da década de 1990, a Argentina promoveu um amplo programa de privatizações, o que, somado a outras políticas adotadas pelo país, culminaram em uma grave crise no início do século XXI. Todo o processo ficou conhecido pela enorme corrupção e pela falta de regras capazes de garantir a fiscalização dos serviços privatizados. Por isso, se há um “coitado” nessa história, é o cidadão argentino: depois de ver o patrimônio do país ser vendido em um processo pouco transparente, pode ser obrigado a arcar com o alto custo da retomada desse mesmo patrimônio.
*Sylvia Saes - Professora do Departamento de Administração da USP e coordenadora do Center for Organization Studies (CORS)
*Bruno Varella Miranda- Mestre em Administração pela USP