*Bruno Varella
Em certa medida, não surpreende que europeus e norte-americanos estejam buscando rotas distintas para o desenvolvimento do comércio justo. O contraste entre as visões de mundo nos dois lados do continente, considerável em outros aspectos da vida cotidiana, teria que manifestar-se também nesse mercado. A entrada tardia dos EUA no comércio justo, se por um lado possibilitou uma considerável expansão na venda de produtos Fairtrade e a entrada das grandes empresas nesse negócio, levantou dúvidas acerca da aderência entre as práticas comerciais e os princípios do movimento. Com uma estrutura de governança relativamente complexa – graças, principalmente, aos diversos interesses envolvidos em sua existência -, é natural que o sistema Fairtrade tivesse que lidar mais dia menos dia com essas questões.
A história do comércio justo, de fato, mostra o quanto pode ser difícil definir estratégias, alvos e princípios. Quem conhece a evolução do mercado solidário sabe que, desde o final da década de 1940, este assumiu inúmeras funções. De um papel ativo em todos os segmentos da cadeia de produtos comercializados sob a denominação “comércio justo”, os militantes e organizadores deste nicho hoje se encontram cada vez mais ligados ao estabelecimento de regras e padrões. Da mesma forma, os grupos beneficiados e os produtos comercializados foram se transformando ao longo do tempo: a certificação de produtos agrícolas, face mais visível do Fairtrade na atualidade, constitui atividade que ganha corpo apenas nos anos 1990. Nem mesmo os grupos historicamente envolvidos com o comércio justo podem ser considerados idênticos; basta contrastarmos as características sociais de grupos como os menonitas norte-americanos e os partidos de esquerda europeus.
De qualquer maneira, podemos apontar a entrada da Transfair USA no negócio da certificação solidária de produtos agrícolas como um marco. Corriam os últimos anos da década de 1990 e, com eles, enorme inquietação acerca do excesso de oferta da produção certificada – o café é sempre o exemplo clássico. Com a ajuda dos norte-americanos, embora nem toda a produção tenha encontrado um destino dentro do mercado solidário, cresceram as vendas e algumas gigantes passaram a se interessar pelo nicho. Por outro lado, é inegável que, em alguns casos, o sistema Fairtrade abriu mão de parte de suas reivindicações, em especial a busca por maior transparência, em troca de um maior número de produtores inseridos no mercado.
Com a separação entre europeus e norte-americanos, nova mudança é esperada: agora, cafeicultores familiares não associados ou grandes cafeicultores que respeitem os padrões estabelecidos pelos administradores do comércio justo nos EUA poderão entrar no mercado. Os efeitos dessa transformação podem ser os mais diversos. É impossível, entretanto, não desconfiar dessa fixação por metas de crescimento de mercado e do número de produtores certificados em um nicho em que, muitas vezes, a detenção do selo não garante inserção efetiva no mercado. É possível que as pressões por crescimento rápido levem a um desmantelamento ainda maior do equilíbrio precário que sustenta os princípios do comércio justo. Quando se fala de um grupo tão heterogêneo, todo cuidado deveria ser pouco.
Obviamente, qualquer visão que defenda o congelamento do Fairtrade deve ser vista com desconfiança. Por exemplo, seria um erro supor que os produtores familiares de café detêm o monopólio das práticas sociais e trabalhistas superiores. A princípio, a escala da produção diz respeito unicamente à escala de produção! O grande temor, porém, é o de que o comércio justo, cuja principal força está relacionada à tentativa da construção de um conjunto de princípios capaz de ir além da realidade contábil, torne-se apenas mais do mesmo. Ao invés de auxiliar os agricultores e trabalhadores dos países em desenvolvimento e informar os consumidores, o resultado seria frustração e confusão mental.
Por tudo isso, o momento pede uma importante reflexão de todos os agentes envolvidos nesse importante – e crescente – nicho de mercado. A maior independência da iniciativa norte-americana, se por um lado possibilitará uma abordagem mais próxima da realidade do mercado convencional, por outro pode erodir os esforços de décadas de trabalho de outros militantes. Nunca é demais repetir, um dos princípios trunfos de movimentos como o comércio justo é o fluxo de informações que leva aos agentes beneficiados. Dito de outra forma, o dinheiro é apenas parte de um pacote que busca aumentar a auto-estima e o bem-estar desses indivíduos. Que o aprofundamento do modelo norte-americano de fazer comércio justo não se esqueça disso.
*Sylvia Saes - Professora do Departamento de Administração da USP e coordenadora do Center for Organization Studies (CORS)
*Bruno Varella Miranda- Mestre em Administração pela USP