De forma intuitiva, valorizamos o que é especial. Ou seja, conferimos um valor maior ao produto ou serviço quando este se apresenta como especial. Após a efetivação da troca mercadológica, do produto pelo dinheiro, o comprador irá utilizar o produto e, de acordo com suas expectativas e capacidade de análise, terá seu desejo pelo “especial” satisfeito ou não. Esse é o jogo.
Mercadologicamente então, o que é especial depende de uma relação de troca satisfeita, onde vendedor e comprador estão mutuamente de acordo. É assim, uma relação social, onde duas pessoas que possuem visões distintas negociam com base naquilo que identificam como “valor”. Ao alinharem suas expectativas, o negócio é realizado. Na prática, isso traz implicações importantes para o relacionamento entre vendedores e compradores no mercado de café.
A definição de cafés especiais sempre necessita de parametrização. A primeira aparição do termo foi em 1974 no periódico Tea & Coffee Trade Journal, cunhado por Erna Knutsen, uma referência mundial sobre o tema. Knutsen afirmou neste artigo que os cafés especiais seriam os “grãos dos melhores sabores produzidos em microclimas especiais”.
Erna Knutsen. Fonte: Home-Barista (https://www.home-barista.com/knockbox/i-just-met-erna-knutsen-godmother-of-specialty-coffee-by-accident-t30143.html)
Esta definição por si só é muito poderosa. Ela fala de melhores sabores, um atributo organoléptico da bebida. Fala também sobre microclimas especiais, uma clara referência às origens produtoras. E também demonstra um dos aspectos mais relevantes do mercado de cafés especiais: a perspectiva do comprador. O comprador é um intermediário poderoso. Ele tem a missão de traduzir os desejos dos consumidores finais em termos técnicos para os produtores e exportadores. E o que não falta no mercado de café são intermediários.
No início da década de 1980 surge a Specialty Coffee Association of America, a SCAA, com um propósito: construir um fórum comum para discutir questões e definir padrões de qualidade para o comércio de cafés especiais (SCAA, 2017). Ou seja, coordenar (ou comandar?) o mercado. Após 25 anos, mais de 2500 membros associados, a maior feira de café do mundo e diversas iniciativas para padronizar o mercado, podemos dizer que conseguiram. Pelo menos no que se refere a impor um padrão de qualidade de café aos produtores do mundo inteiro. “Café especial tem que ter nota acima de 80 pontos”, é o que mais se houve em nossas andanças.
Para controlar este mercado, desenvolveram um “padrão SCAA” de qualidade. Um protocolo de prova (Cupping Protocol) que busca uma padronização objetiva de qualidade. Para dominar este padrão, são necessários diversos treinamentos para os provadores de café, e até mesmo uma certificação (Q-Grader), controlada pelo Coffee Quality Institute, que iniciou suas atividades como um comitê específico dentro da própria SCAA (CQI, 2017).
Nova Roda de Sabores da SCAA. Fonte: https://scaa.org/chronicle/2016/01/19/reinventing-the-flavor-wheel-industry-collaborates-to-identify-coffee-flavor-attributes/
Foram esforços importantes que moldaram o mercado como o conhecemos hoje. Forneceram um balizamento aos produtores e intermediários. Se você não tem 80 pontos, está fora. É Fairtrade? Tem 82 pontos? Não? Está fora. É simples assim.
O problema é que conforme novos atores foram entrando no mercado de cafés especiais, e, mais importante, conforme os consumidores foram apreendendo que ter algo diferente no café era bom, as coisas começaram a ficar mais complexas. Afinal, o valor do especial depende em última instância da percepção do consumidor final. E foi aí que a indústria de torrefação e moagem, grandes, médios e pequenos players no mercado começaram a oferecer um café “um pouco” melhor e chamar de gourmet. Ou então, de café “superior”. Ou simplesmente de “especial”. Os cafés com certificações socioambientais, que atestam o sistema de produção, e não a qualidade da bebida, foram colocados aos olhos dos consumidores também como “especiais”. Adicione um sabor de baunilha ao café ruim e este se torna especial. Faça um cappuccino com ele, e ele se torna especial. Coloque ele numa cápsula de alumínio servida por um ator de Hollywood e o café se torna, especial.
Quem está certo? Não importa. Se o consumidor percebe o café como especial e adiciona um valor imaginário, que se torna real na hora do pagamento, temos um complexo mercado onde significados, informações, ações de marketing e propaganda moldam as transações e sua precificação. Sim, a questão é mais complexa do que definir uma nota de corte de 80 pontos.
No mercado interno brasileiro, um gigante que consome anualmente 21 milhões de sacas de café, a Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC) lançou em 2004 um pioneiro programa de autocontrole para estimular a produção de cafés de qualidade. O Programa de Qualidade do Café (PQC). Nele os cafés com pontuação acima de 7,3 pontos numa escala de 0 a 10 recebem o rótulo “Gourmet”, os cafés entre 6,0 e 7,3, recebem o rótulo “Superior” e os entre 4,0 e 6,0, o rótulo de “Tradicional”. Atualmente o PQC possui mais de 700 marcas certificadas e é utilizado como padrão de referência para licitações públicas baseadas em critérios de qualidade mínima. O problema é que por ser uma norma voluntária não impede que outras marcas no mercado usem de forma errônea os termos gourmet, especial ou superior. Isso gera confusão na mente dos consumidores. O programa do PQC é uma iniciativa única na indústria mundial. Seu crescimento mostra como o mercado brasileiro está mudando.
Os Baristas: intérpretes e gurus dos consumidores.
Dada a complexidade do assunto, afirmo que não existe consenso na literatura sobre o conceito de cafés especiais. Alguns autores focam apenas em atributos ligados à qualidade da xícara, enquanto que para outros, café especial é aquele possui apenas algum atributo que o diferencia do café commodity. Ambos têm razão, sob pontos de vista diferentes.
Particularmente, gosto de separar a categoria de cafés especiais, pois são muitos os conceitos e cafés que se encaixam nela. Desta forma, os cafés especiais são aqueles que possuem atributos claros de diferenciação aos olhos do consumidor, seja por atributos organolépticos ligados à bebida, seja por atributos ligados ao sistema de produção e preparo. Sim, ela é uma definição ampla, mas ela reflete valor na xícara. Que é o que importa.
Em uma recente pesquisa com consumidores de cafés especiais, realizada pela Universidade Federal de Lavras, em parceria com a InovaCafé e o Grupo de Estudos em Marketing e Comportamento do Consumidor (GECOM), com coordenação da pesquisadora Elisa Guimarães (PPGA/UFLA), consideramos especiais os cafés que possuíam atributos claros de diferenciação em comparação ao café tradicional/commodity, seja pelas características físicas da bebida (sabor, corpo, aroma, etc.), seja por atributos ligados ao sistema de produção (orgânico, certificado, etc.) (REVISTA ESPRESSO, 2017). Foram mais de 900 respondentes no Brasil inteiro, e em breve, divulgaremos os resultados.
Mercadologicamente falando então, aos olhos dos consumidores, os cafés especiais são uma grande categoria que engloba diversos conceitos, como o café “gourmet”, o “superior”, os cafés sustentáveis (certificados ou não), de origem (controlada ou não), formas de preparo e de apresentação destes cafés. Sim, é complexo.
Agora, existe esperança. Um dos resultados desta pesquisa com os consumidores de cafés especiais que realizamos é que ela mostra claramente que o consumidor está disposto a aprender, a buscar e interpretar informações. Por isso, o marketing é tão importante nesta categoria.
Cafesal na UFLA — local de aprendizado sobre a cultura de consumo do café
Pode ser que, com o passar dos anos, o padrão SCAA se torne regra também para os consumidores de cafés especiais no mundo todo. É uma possibilidade. Ele já é realidade para os consumidores mais sofisticados em termos de informação em cafeterias que trabalham com direct trade (comércio direto produtor/cafeteria), por exemplo. Assim como ocorre no mercado de vinhos, onde a pontuação do lote de uma safra específica é levado em conta por consumidores especialistas. Por sinal, neste mercado temos diversos sistemas de pontuação diferentes. Voltando ao café, o padrão SCAA tem consistência técnica e mercadológica para se tornar a referência, e sua aceitação tem crescido junto com o mercado de cafés especiais.
Mas vale repetir um alerta que sempre digo aos produtores, “não basta fazer qualidade, tem que vender qualidade”. Não dá para ficar refém dos padrões da SCAA, afinal, existem outras possibilidades de se agregar valor ao café.
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Texto Original para o Coffee Insight (https://coffeeinsight.com.br/)
Fontes:
SCAA. History. Acessado em 02/02/2017. Disponível em: https://www.scaa.org/?page=history.
CQI. FAQs. Acessado em 02/02/2017. Disponível em: https://www.coffeeinstitute.org/about-us/faqs/.
REVISTA ESPRESSO. Pesquisadores brasileiros traçam perfil dos consumidores de café especial. Acessado em 15/02/2017. Disponível em: https://revistaespresso.com.br/2017/02/09/pesquisadores-brasileiros-tracam-perfil-dos-consumidores-de-cafe-especial/.