Um processo extremamente doloroso tem transformado nossas vidas. Aqui no Brasil já são 12 meses em pandemia, tempo suficiente para transformar os hábitos, padrões de comportamento, padrões de consumo, forma de trabalhar, de pensar, de interagir, enfim, tempo suficiente para promover transformações, e na era digital estas transformações são exponenciais e disruptivas, em alguns casos é como pegar uma pagina em branco e reescrever tudo de novo, mas, como disse o francês Lavoisier alguns séculos atrás, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Vivemos uma grande transformação no mundo todo e no café não é diferente. Para falar em transformações no mundo do café, inevitável recorrermos as bem traçadas “3 ondas de consumo do café”, descritas em 2003 por Trish Rothgeb, uma experiente profissional do seguimento de consumo de café, membro da World Barista Championship. Trish foi assertiva em olhar para o café ao longo dos anos em que esta cadeia se desenvolveu, e de forma muito didática fazer uma leitura dos principais marcos e reuni-los em 3 grandes movimentos, 3 grandes ondas que ditaram as tendências baseado no comportamento dos consumidores e da indústria.
Você se lembra como foi? Vamos dar uma relembrada?
Primeira onda do café
Cronologicamente, a 1º onda de consumo do café vem lá dos idos de 1800, quando o café começa a ter uma maior exploração por parte da indústria, e quando começa seus primeiros ensaios para se tornar uma bebida global e consumida em larga escala, digamos que algo ainda embrionário.
Neste momento, o que era importante era tornar esta bebida conhecida, disseminar seu consumo, realizar sua inserção no mercado, viabilizá-la como negócio.
Neste contexto, as características que constituem a 1º onda do café, são preços baixos, um produto sem nenhuma diferenciação, sem origem, voltada para construir um mercado de massa e com um predomínio do café instantâneo. O máximo que se buscava nesta onda em termos de inovação eram as embalagens, tentando as tornar atrativas aos olhos dos consumidores. E foi assim por um bom tempo, um mercado e estratégias que visavam disseminar o consumo do café, e foi o que aconteceu. Tivemos dentro desta onda praticamente o início do marketing no café, quando em 1959 a Federação dos Cafeicultores da Colômbia, inicia a busca pela diferenciação lançando a lendária Marca “Juan Valdez”. Nesta onda não tivemos um epicentro muito caracterizado, foi um movimento quase global, polarizado nos principais mercados consumidores EUA e Europa simultaneamente.
Segunda Onda do café
Aqui iniciamos um caminho sem volta para o consumo de cafés de qualidade. Epicentro: Estados Unidos da América. Local Exato: Seattle. Ano: 1971, surge a Starbucks. O nome Starbucks foi inspirado no Romance Moby Dick do escritor estadunidense Herman Melville, cujo livro evocava um romance em alto-mar e a tradição dos navegadores que primeiro comercializaram o café. Histórias a parte, o simbolismo da Starbucks como propulsora da 2º onda do café, ladeada por uma outra hoje gigante Peet’s Coffee, vem da grande disseminação em cadeia do hábito de se tomar café fora do lar por meio das cafeterias, que começam então a surgir em redes, se posicionando como o “terceiro lugar”, um ponto de encontro ou descanso das pessoas, uma parada para o café entre o trabalho e o lar. Nesta onda começamos a perceber uma significativa elevação da qualidade do café arábica, o foco na origem, evidenciando inicialmente o país de produção daqueles grãos, os diferentes estilos de torra começam a nascer e terem relevância e a inserção do café espresso também ganha uma projeção muito grande.
Todo este movimento provocado pela 2º onda, a época, foi uma espécie de “iluminismo” no café, uma mudança cultural que começava a tratar esta bebida como algo especial, surgindo dai a expressão e o conceito de “café especial”, cunhado por Erna Knutsen em 1974, conceituando café especial aqueles originados de microclimas geográficos especiais, que produzem grãos com perfis sensoriais únicos e exclusivos. Erna foi uma norueguesa, que na época trabalhando em uma importadora de cafés em São Francisco, Califórnia/USA, foi uma das primeiras mulheres a trabalhar com venda de cafés verdes. Erna foi reconhecida pela Specialty Coffee Association como a fundadora da indústria de cafés especiais, tendo um protagonismo muito grande neste mercado, vindo a falecer em 2018 com 96 anos de idade.
Como visto, esta onda marcou o “nascimento” dos cafés especiais e se estendeu por um bom tempo, disseminando o consumo de cafés com o atributo da qualidade sendo colocado em evidência, se tornando um hábito de consumo bem mais sofisticado e valorizado pelos consumidores.
Eis que um novo movimento começa a surgir.
Terceira onda do café
A segunda onda do café foi dominada pela então transformada grande indústria, tendo protagonismo de grandes redes de cafeterias que promoveram uma certa “gourmetização no café, movimento que foi até por volta da metade para o final da década de 1990. Surgi então a terceira onda do café, um movimento liderado por pequenas cafeterias, micro torrefações, mais uma vez com maior concentração nos Estados Unidos, em especial São Francisco, digamos que desta vez o epicentro desta nova onda, que aos poucos foi se disseminando no mundo.
Nesta onda o protagonismo tem pessoas mais diretamente envolvidas, os baristas começam a ter mais voz e espaço, começando a existirem os campeonatos de baristas e cafeterias onde os métodos de preparo de cafés filtrados passam a serem valorizados. Estes profissionais, baristas e micro torrefadores ampliam seu conhecimento, avançam nos estudos e começam então a se aprofundarem e entenderem mais a fundo o universo do café, estendendo isso ao seu publico e formando novos consumidores.
Neste movimento, para falar de origem não basta mais citar o país, mas sim a Região produtora e em alguns casos até a fazenda. A exigência da qualidade dos grãos aumenta e para extrair e perceber melhor esta qualidade as torras passam a ser mais claras e controladas, praticamente um processo artesanal com a figura do mestre de torra também surgindo.
As notas sensoriais ganham força, com uma descrição mais ampla das nuances obtidas em cada café e um maior interesse do consumidores pela origem, safra , processo e variedades, a exemplo dos “wine cronnoisseurs” que são aqueles consumidores de vinho que buscam mais conhecimento sobre a bebida, onde começa então a haver esta comparação do vinho com o café, com pessoas focadas em muito mais que uma bebida, mas uma experiência de consumo, em uma história.
Este movimento se expandiu para o mundo todo, as cafeterias e micro torrefações posicionadas na terceira onda formaram uma base considerável, até mesmo em centros consumidores mais tradicionais, transformando a cultura do café, elevando muito a qualidade, formando especialistas, criando uma nova linguagem, atraindo uma nova geração e deixando o café “mais descolado”, uma bebida que passou a atrair o publico mais jovem como as “tribos hipsters” , um publico diríamos mais “underground” que identificou no café um estilo de vida.
Toda esta profusão de desenvolvimento do consumo de café provocada pela terceira onda traz resultados até hoje, e seus fundamentos se consolidam cada vez mais, e o café de qualidade continua avançando, mas como na natureza tudo se transforma, é preciso avançar e migrar de onda.
Momento de transição de ondas
Quando se nota uma mudança das ondas?
Tivemos movimentos importantes nos últimos dois anos diria, como a compra da Blue Bottle, rede de cafeteria americana considerada símbolo da terceira onda comprada pela Nestle entre outras aquisições no mercado internacional que nos deram sinais de “esgotamento”, ou de transformação da 3º onda, levando em conta os princípios que constituíram a mesma, os quais trouxemos aqui.
O mercado americano, maior do mundo no café, felizmente hoje, segundo a SCA já é composto de 50% de cafés especiais, portanto não estamos aqui mais falando em mercado de nicho. La estes cafés são facilmente encontrados nas grandes redes de supermercados, desde as mais comoditizadas como Walmart até as mais gourmets como Whole foods, vendidos em grãos, das mais diversas origens, qualidades, torras, etc, etc. Portanto um mercado muito consolidado, onde a inovação se torna cada vez mais complexa.
No Brasil, segundo maior mercado global pra café, esse movimento de “massificação” do café especial também teve um crescimento muito grande, diria nos 3 ou 4 últimos anos, marcado pela entrada das principais marcas da grande indústria, que até então posicionavam seu portfolio apenas no seguimento de commodities, criando agora também produtos para o seguimento de cafés especiais. Hoje marcas como 3 Corações, Mellita, JDE, Nestle, entre outras, gigantes da indústria nacional, todas criaram produtos, até mesmo linhas inteiras de cafés especiais, tornando mais acessível o acesso aos consumidores nas gondolas em geral. Um movimento que ainda está se consolidando em nosso país, pois mesmo a qualidade tendo sido elevada, as embalagens se tornado mais modernas, a comunicação evoluído, estes produtos nestas novas linhas ainda são em sua maioria comercializados torrado & moído, uma padrão de consumo que para evoluir precisa migrar para a compra do café em grãos, que indica um conhecimento maior do consumidor e uma preocupação maior com a qualidade.
Temos um gargalo pra isso acontecer no Brasil, ainda é difícil encontrar moedores, eles não estão disponíveis nas gondolas como nos EUA, ainda são limitados ao e-commerce, que mesmo com todo crescimento ainda não chega na grande massa de consumo. Este gargalo é claro não é o único pra que esta evolução aconteça, a educação em geral do consumidor precisa de mais alguns passos pra podermos atingir uma escala maior neste padrão de consumo, sem falar é claro que o mercado brasileiro tem um poder de consumo muito menor em termos de renda em relação a mercados mais maduros, mas há um grande espaço na camada de média e alta renda, uma demanda reprimida e pra que isso aconteça depende de educação, de promoção e acesso em termos de canais de venda, hoje extremamente potencializados pelo digital, consideravelmente na pandemia.
Este movimento é espetacular, ainda mais em se falando em um país que é uma origem produtora. Tradicionalmente, até por conta do nível de desenvolvimento dos países que são origens produtoras de café, quase todos subdesenvolvidos, o consumo de café é muito baixo, portanto, o Brasil se destaca entre as origens produtoras, pois tem um consumo percapta muito bom, em torno dos 5,6kg/ habitante / ano, e agora com este crescimento do consumo de café com qualidade, caminha de forma mais consistente para uma consolidação em torno de uma cultura de consumo. Pois é bastante diferente falarmos em volume e tradição de consumo e cultura de consumo. Volume e tradição nós já temos, precisamos agora formar nossa cultura de consumo, e sabemos que cultura esta diretamente relacionada ao nível de conhecimento.
O que descrevemos aqui denota movimentos de transição nas ondas de consumo, demonstra a terceira onda querendo evoluir e saltar pra 4º, pois os elementos que a trouxeram até aqui já não suficientes para sustenta-la, pois ela já não é mais novidade, ela foi lentamente “engolida”, e sabemos que no mar quando o movimento de ondas esta forte vem a ressaca, então como tudo se transforma a quarta onda esta batendo na porta, ou chegando na praia...
E qual será o epicentro? E quais serão as características desta nova onda?
Quarta onda do café
Bom meus amigos, primeiro quero dizer que aqui não estou me atrevendo a dar uma cartada e dizer que a quarta onda é isso ou aquilo, não estamos cravando nenhuma posição, mas sim convidando para reflexões e porque não propondo caminhos, pois temos sempre uma página em branco pra escrever e algo que pra mim é bastante estimulante é uma página em branco.
Vimos nas três primeiras ondas, uma predominância latente do surgimento das mesmas nos grandes mercados consumidores, pois se falamos em ondas de consumo, naturalmente isso se dá onde o consumo impera, onde ele está surgindo ou onde ele esta evoluindo.
Nós aqui, países produtores sempre fomos mero coadjuvantes nestas ondas, sempre ficamos assistindo a coisa acontecer e claro, fornecendo nossos grãos, verdes, pra que os mercados que entendem de consumo, que se especializaram no consumo, que tem poder de consumo transformassem estes grãos e preparem-se eles nos mais sofisticados métodos, etc e tal. O produtor que é aquele que tem o domínio da produção pouquíssima participação teve na constituição das ondas de consumo, pois até outro dia atrás muitos produtores nem mesmo conheciam o que aquele fruto que ele arduamente produz, poderia gerar na sua xicara em termos de sabores, que a história de vida dele também tem valor, sem falar que existe uma infinidade de processos que ele pode implementar para evoluir os resultados que ele adquire na lavoura.
Mas essa história mudou...
Os produtores não querem mais apenas ser coadjuvantes, talvez nem soubessem da multiplicidade de atores que a cadeia café possui, mas o fato agora é que querem exercer seu protagonismo e participarem ao longo da cadeia, entendendo melhor como se da o consumo e participar dele também.
Este fenômeno se da especialmente no Brasil meus amigos, além de especialistas dentro da porteira, os produtores estão cada vez mais estudando e se especializando fora da porteira, entendo melhor sobre a degustação do café, a comercialização, a torra, os métodos de preparo, produto e consumo.
Além disso, em se falando de Brasil, o movimento de cafeterias não está hoje concentrado apenas nos grandes centros, ele se da também no interior e não apenas no sudeste e sul como no centro-oeste, norte e nordeste, sem falar no distrito Federal, que se não soube evoluir na política, no café hoje da aula!
Temos toda uma cadeia se estruturando para ser protagonista não apenas na produção e no volume, mas também na qualidade, no conhecimento, na cultura do café, elementos que sim, formam uma grande onda.
E a ciência? A ciência não olha mais apenas pra produtividade, que é a mais relevante na produção mas que já a alcançamos, ela também observa agora o terroir, a qualidade de bebida, não se restringe mais a uma espécie e sim olha pra todas elas valorizando as características que cada uma possui. Temos hoje jovens brilhantes surgindo na pesquisa do café do Brasil, que estão promovendo uma transformação no olhar da pesquisa e provocando novos movimentos.
Bom, acho que já estamos descrevendo traços da 4º onda e dizer que, não se trata aqui mais uma vez de cravar uma única opinião até porque hoje o mundo é cada vez mais formado por redes de pessoas e de conhecimento, mas sim de dizer que, após três ondas de consumo que tiveram mercado internacionais como protagonistas, como Epicentros, porque não agora nós, o Brasil, maior produtor do mundo ser o grande Epicentro da 4º onda do café?
No Brasil, nós unimos produção e consumo, isso nenhuma grande potência do consumo possui, portanto chegou a nossa vez de fazer isso, não no discurso e no dizer que somos maiores, mas sim pela cultura que estamos conseguindo formar, pois não se trata de impor, mas sim de mostrar o caminho.
Portanto sem mais delongas, o que de tendências, elementos, características, acontecimentos, entre outros, nós o Brasil temos para sermos o Epicentro da 4º Onda do café?
1- Origem produtora (Brasil) como epicentro
Este pra mim deveria ser ponto chave da quarta onda. Uma origem produtora liderando este novo movimento, integrando produção e consumo. Quando olhamos para os grandes especialistas globais no seguimento de consumo, que ditam tendências, apesar de serem grandes estudiosos e terem muita experiência em consumo, por estarem em países que não possuem produção, o conhecimento deles é “raso” na produção e portanto falta uma parte fundamental desta cadeia em sua bagagem que eles somente terão se vierem viver em uma origem produtora, pois esta vivência não é possível de se adquirir em livros ou vídeos. O conhecimento na produção exige a vivência diária dos processos, o domínio do terroir e tudo que ele pode entregar. A produção é o processo mais complexo de toda a cadeia, absolutamente determinante para a qualidade que será produzida e entregue na xicara. O processo de torra, dominado nos principais consumidores, é de extrema importância, mas ele é complementar ao processo de produção. É impossível transformar um café produzido com baixa qualidade em uma bebida de alta qualidade, por isso digo que é complementar. Existem é claro tecnologias para diferenciar perfil de torra e ressaltar diferentes perfis sensoriais, nuances conforme desejado, porem a partir de um café de qualidade, a qualidade na produção é algo inegociável, ou você tem ou não tem, já na torra mesmo que por algum motivo não se acerte exatamente a curva, um café de alta qualidade poderá se expressar bem, será agradável ao consumo. Portanto a torra é um acabamento, ela é finalística.
Por isso, o conhecimento na produção na atualidade, associado a qualidade, a inúmeros processos, escolha de variedades, terroir, etc, passou a ser ainda mais determinante na formação da qualidade e algo que somente pode ser vivenciado na prática, um conhecimento que se forma na origem produtora.
E quando o conhecimento em consumo, em torra também é detido na origem produtora?
É este o movimento que temos que fazer e estamos fazendo no Brasil.
A partir deste entendimento, associando o conhecimento na produção ao conhecimento na transformação do grão pela torra, no conhecimento em consumo como vem acontecendo hoje no Brasil, temos uma enorme vantagem competitiva frente aos grandes centros consumidores, que é integrar cada vez mais o consumo a produção, unindo estes dois conhecimentos, direcionando a produção em função do que se busca no consumo e propiciando a vivência de quem está no consumo na produção e vice-versa.
O conhecimento do consumo em nível de profundidade é essencial para liderarmos a 4º onda, e hoje com o amadurecimento, profissionalização e evolução do nosso seguimento de consumo, através dos baristas, microtorrefações, cafeterias e grande indústria, temos no Brasil profissionais altamente capacitados, que podem assumir um importante protagonismo e levar toda sua bagagem e visão do consumo para a produção, transformando esta relação em inovação e experiência para os consumidores.
Não somos mais coadjuvantes, a nova geração de produtores e profissionais da cadeia chegaram em um momento que o conhecimento em produtividade já estava muito avançado e voltaram seu interesse e esforços para qualidade e consumo e isso esta fazendo toda a diferença para gerarmos um novo posicionamento do café brasileiro.
E no consumo, somos simplesmente o 2º maior consumidor e agora com toda a evolução da indústria não estamos mais posicionados apenas no volume.
Portanto, o que pode surgir desta interação maior entre consumo e produção é algo que não podemos ainda nem imaginar. Por mais que os profissionais do mercado internacional sempre tenham buscado esta interação com a origem e alguns deles tenham até avançado bastante neste conhecimento, de novo, eles não estão em uma origem produtora, com acesso constante a produção, sem falar nas diferenças culturais, de língua, etc.
Nós temos, portanto, enquanto origem produtora e importante player do consumo, uma oportunidade única de ditarmos tendências em consumo a partir da união entre estes dois conhecimentos e isso pode se transformar em diferencial competitivo para toda a cadeia.
2- Democratização da qualidade
A qualidade precisa ser democratizada, um mercado maduro e consistente tem sempre como pilar a qualidade e no café isso não pode ser diferente. Para que isso aconteça necessariamente a grande indústria tem que participar, e é exatamente o que estamos vivenciando.
Se a indústria compra mais café de qualidade, esta demanda chega no produtor, que também amplia seu foco na qualidade. Muito se fala na eliminação do PVA ( preto, verde e ardido) para o consumo, mas este consumo só existe porque ele tem mercado. Então precisamos mostrar ao consumidor um novo caminho, mesmo na base da pirâmide onde a renda é menor.
Vamos pegar uma carona no mercado da cerveja. Quem ouvia falar em cerveja puro malte ou cerveja artesanal no mercado brasileiro há 10 anos atrás? Houve um movimento, um grande crescimento das micro cervejarias, que hoje crescem cerca de 30% no Brasil, que impulsionou a grande indústria a ingressar neste seguimento, elevando consideravelmente a qualidade desta bebida no Brasil, que antes se concentrava em poucas marcas e hoje se pulverizou em dezenas de marcas, muitas delas locais, que primam pela qualidade, algumas delas até sendo hoje compradas pela grande indústria para ganhar e manter seu Market share, movimento que também se vê no café especial.
Podemos dizer então que o mercado de cervejas no Brasil amadureceu e que o grande vetor deste amadurecimento foi a qualidade, que impulsionou o consumo e formou consumidores mais exigentes, mas de forma democrática.
O café pode, deve e está fazendo este movimento, portanto todas as bases da pirâmide de consumo irão sofrer transformações e aumento da qualidade e isso movimenta toda a cadeia, democratiza a qualidade.
3- Vinificação do café
Ao passo que percebemos uma democratização da qualidade acontecendo, outros movimentos também acontecem na pirâmide de consumo, e esta maior oferta de produtos de qualidade, pressiona o topo da pirâmide a se movimentar rumo inovação, exclusividade, sofisticação e aqui neste seguimento estamos falando da altíssima qualidade, os cafés acima de 85 pontos, diríamos as raridades, produtos de maior valor agregado e com ofertas mais reduzidas, que elevam seu valores e acaba ficando restrito a camada de consumidores de maior poder de consumo.
No topo da pirâmide de consumo podemos falar na “vinificação do café”, este movimento já perceptível tanto na produção quanto na ponta consumidora.
Quando falamos em vinificação do café, traçamos um paralelo com a cadeia do vinho para pegar emprestado o que de melhor o vinho pratica, em termos do idioma existente em sua comunicação, que vai desde a arquitetura do rótulo, a postura dos profissionais, os rituais de consumo, os processos empregados ne elaboração, como hoje vemos o crescimento da fermentação induzida, em alguns casos até mesmo com processos se utilizando de barris de carvalho para testar fermentações, enfim, movimentos que se concentram entorno da experiência de consumo, já bastante explorado pelo vinho e agora aplicado no universo do café.
Aqui destacamos uma figura importante que vem surgindo. A exemplo do vinho onde há tempos já temos os winemakers, profissionais responsáveis por elaborar o perfil sensorial do vinho desde a produção, agora temos os coffeemakers, que são profissionais com exímio conhecimento na qualidade da bebida do café, que agora atuam nas propriedades, dominando também o conhecimento em produção e pós-colheita e com isso isso participando da elaboração do perfil sensorial dos cafés.
4- Transformação digital
Aqui trazemos um tópico que sem sombras de dúvida foi o mais potencializado pela pandemia do COVID-19. A transformação digital esta presente em todos os seguimentos e vem alterando substancialmente as formas de comunicação, relacionamento, comercialização, gestão e no café já esta sendo um pilar sustentador da 4º onda.
Um crescimento exponencial do e-commerce é possível se notar ao abrir o instagram.
Marcas e mais marcas surgindo diariamente, com muita criatividade, foco na qualidade, foco na integração do produtor e o consumidor, onde com poucos cliques no sofá da sua casa você finaliza a compra de um café que antes você nem saberia que ele iria existir. E para os produtores, que residem no interior, com mercados locais limitados, ao abrir uma pagina no instagram, fazendo um bom trabalho de comunicação, ele pode acessar um mundo de consumidores antes inimaginável, portanto, “o mundo véio não tem mais porteira” meus amigos.
E este movimento provocado pela transformação digital não ocorre apenas no consumo, o produtor de café também hoje, seja pelos aplicativos de mensagem como whatsapp, sejam pelos aplicativos como plataformas de negócios que vem surgindo, fecha a venda do seu café com pouquíssimos cliques, sem sair da sua fazenda, quando nessa tem internet ou mesmo na sua casa. Algumas trades e cooperativas já se movimentam neste sentido tendo suas plataformas e adesão por parte dos produtores tem sido crescente, portanto, eis ai um movimento que é disruptivo do ponto de vista desta transação comercial que gera bilhões, e que ao que tudo indica, não tem volta...
Para além do consumo e da comercialização, a transformação digital amplia as possibilidades de se adquirir conhecimento, tanto na base produtora quanto na base consumidora e na indústria, pois o acesso e a oferta dos mais variados tipos de conhecimento esta totalmente disponível, e também vai moldar daqui para frente a forma de se buscar e se levar conhecimento, até mesmo falando em termos de assistência técnica.
5- Origem controlada
Definitivamente nesta quarta onda, chegou o momento da Origem, mas desta vez de forma controlada. A partir da 2º onda a origem já passou a ser explorada, tendo os países de origem sendo comunicados para gerar diferenciação dos grãos, afinal de contas, assim como não se toma um bom vinho sem saber de onde ele veio, também não se poderia comunicar um bom café, formar um novo consumidor sem dizer a ele de onde veio aquele café.
Na terceira onda este movimento da origem ampliou, e além do País de origem começou-se também a comunicar a região, a fazenda, o nome do produtor. Mas na contramão do vinho ou de outros tantos produtos com indicação geográfica, sem garantias de procedência...
Seja no Brasil, seja no mercado internacional, a origem passou a ser essencial na comunicação da indústria, porém, quem garante a origem, a rastreabilidade, a procedência?
A não ser quando se faz uma compra direta do produtor, é possível se garantir a origem do café sem a garantia da origem produtora? Principalmente no seguimento de volume?
Entra aqui o papel importantíssimo das Regiões produtoras através de suas governanças, que detém os registros de indicação geográfica e sistemas de certificação de origem que garantem a origem e qualidade do café. São organizações lideradas e geridas pelos produtores, aqueles que essencialmente conhecem seu território e sua produção e que podem garantir melhor que ninguém o que seu produto possui de atributos.
Hoje no Brasil chegamos a 9 Regiões produtoras com indicação Geográfica, as quais listo aqui:
- Cerrado Mineiro
- Mantiqueira de Minas
- Matas de Minas
- Campo das Vertentes
- Caparaó
- Alta Mogiana
- Região de Pinhal
- Oeste da Bahia
- Norte Pioneiro do Paraná
E este movimento é crescente, outras Regiões se encontram com seus pedidos de registro depositados junto ao INPI e esta consolidação era o que se precisava para o movimento de Origem controlada se firmar e ganhar notoriedade, pois ele impulsiona a evolução das regiões, forma um movimento coletivo e alinha os produtores rumo ao desenvolvimento de sua região, além de garantir ao mercado consumidor, origem e qualidade, diretamente do produtor.
6- Integração, sustentabilidade e transparência da cadeia
Muito associado também ao movimento da origem controlada e ao da transformação digital:
Como garantir a real valorização dos produtores? Como garantir a sustentabilidade do elo micro torrefações e cafeterias que se demonstrou frágil na pandemia? Qual a procedência do café? Qual a garantia da origem e da qualidade? Qual o preço justo? Qual valor da venda? Quando ganha cada elo da cadeia pelo seu trabalho? Qual o real impacto das ações de sustentabilidade?
Primeiro importante entender que todos os elos são importantes.
O produtor é a base, as cooperativas são fundamentais na originação e organização da produção e comercialização, os exportadores e importadores dominam os tramites de do mercado internacional e distribuição, na sustentação de quem esta na ponta compradora, a indústria é quem transforma todo trabalho da cadeia em produto, o varejista coloca na gondola para o consumidor e finalmente o consumidor é aquele que “paga a conta” de toda a cadeia, é a ele que devemos direcionar todos os nossos esforços enquanto cadeia.
Agora, como fica este arranjo de cadeia em meio a transformação digital?
Quão integrada é a cadeia café?
Quão transparente é a cadeia café?
Qual sustentável é a cadeia café?
Temos de alocar esforços nestas questões, eu não tenho aqui as respostas, mas percebo que são pontos chaves em meio ao movimento que o mundo vem passando, principalmente sob o olhar deste cara que é o consumidor que cada vez mais terá acesso a informações, que em um mundo de inteligência artificial e big data comprara seus cafés em plataformas inteligentes que colocarão na palma da sua mão os indicadores reais das histórias que se contam, portanto fortalece a necessidade de transparência em todos os elos da cadeia.
7- Produtores globalizados e jovens a frente das propriedades
Tudo que falamos acima denota este tópico. Agora não só as pessoas do seguimento de consumo são globalizados, mas uma parte considerável dos produtores também, e isso se deve pela transformação digital que amplia o acesso, pelo maior conhecimento dos produtores que vão em busca de informações não só da produção, pelo crescente número de produtores que dominam línguas como o inglês, enfim. No Brasil temos uma número importante de produtores globalizados e isso faz toda diferença, porque o café é um mercado global e as barreiras anteriormente existentes se tornam cada vez mais transponíveis e gera um novo posicionamento do café brasileiro.
Estes produtores globalizados, são hoje jovens em regime de sucessão das propriedades, dividindo a gestão com seus pais e em alguns casos já liderando a gestão, desde pequenas propriedades até grandes propriedades.Eles trazem o foco em inovação, qualidade, tecnologia, comércio direto e muito mais, já estando inclusive tendo participação importante nas cooperativas e associações de cafeicultores, o que também é fundamental para a evolução destas organizações.
8- Consumo de experiência
O consumo de experiência evoluiu muito, e é mais uma demonstração da transição das ondas e aqui mora um pilar fundamental para que sejamos líderes, epicentro da nova onda de consumo.
Pergunto: Nos EUA ou na Europa, o consumidor consegue ter acesso a produção em seus países? A pergunta é muito óbvia, é claro que não porque nestes polos de consumo não se produz café, mas eu apenas fiz questão de indagar para reforçar a oportunidade imensa que temos nas mãos.
Nós podemos literalmente formar os consumidores com maior conhecimento em café em nível global!
E isso deve começar nas regiões produtoras.
De novo, sei que as vezes sou repetitivo nesta comparação com o vinho, mas é proposital. O enoturismo é a maior escola no mundo de agroturismo e de experiência de consumo. As propriedades que produzem vinhos e vinificam, em sua maiorparte, são extremamente receptivas aos seus consumidores, aos turistas, e elas fazem disso uma indústria multibilionária. Segundo matéria do site da Forbes, somente na Califórnia-EUA, o enoturismo é responsável por movimentar 2 bilhões de dólares por ano.
E no café qual o grande case? Como está organizado o turismo? É possível?Sim é possível, existem movimentos nascendo no Brasil, na Colômbia e Costa Rica já existem alguns bons exemplos, mas sem dúvida nenhuma, pelo crescimento do poder de consumo do mercado brasileiro, aqui reside a maior oportunidade neste seguimento, mas esta oportunidade não pode ficar apenas no desejo, ela precisa ser estruturada e ela precisa entrar na agenda do setor e ser encarada como um negócio importante, para geração de receita, promoção e formação da cultura de consumo.
Temos nossos irmãos gaúchos do Vale Vinhedos como exemplo bem sucedido de benchmark na cadeia do vinho, então a nós do café nos resta nos movimentar neste sentido, pois o consumidor já esta preparado para viver estas experiências.
Falando em formar consumidores, temos hoje aqueles que muito além de preparar seu café em casa querem torrar seu café em casa, adquirir grãos verdes direto de produtores ou cooperativas e isso esta amplamente ligado a experiência de consumo, e de novo, nós aqui podemos mostrar o caminho a estes consumidores, possibilitar a eles a compra deste grão e ensinar a ele como se faz, formando uma cultura, isso esta além de produto, além da commoditie, isto é experiência de consumo, é isso que acontece nas principais denominações de origem viníferas do mundo e também pode acontecer no café e ser um pilar importante da 4º onda.
Página em Branco
Existem muito mais fatores, tendências, oportunidades, conceitos, etc que poderíamos aqui listar. O que listamos acima foi um grande apanhado de conversas com amigos do setor, com consumidores, com produtores, foi um pouco do que estamos verificando do setor nos últimos anos, em especial neste ultimo ano em que estamos vivendo uma pandemia, a qual naturalmente esta nos transformando, nos tornando mais reflexivos e como sempre, depois da tempestade vem a bonança, queremos sair mas fortes disso tudo que estamos vivendo, queremos evoluir enquanto pessoas, enquanto profissionais, queremos evoluir em todos os sentidos, e pra nós do café a evolução esta ligada as ondas, pra nós brasileiros o café é algo que cada um dos brasileiros, sendo ou não consumidor vai saber contar um pouco do que ele representa em suas vidas, seja por lembrar de uma pessoa querida que não vive sem café seja por ele ser alguém que não vive sem café, e este é o meu caso, eu não me imagino passar um dia sequer sem esta bebida, abriria mão de muita coisa, de muitos prazeres mas do café não..
Então, falando em Brasil e na quarta onda, qual a nossa estratégia para o café enquanto setor? Como podemos liderar uma nova onda e sermos referência também no consumo?
O mundo está completamente revirado, as cadeiras e as cartas estão em pleno movimento, já temos uma linda história construída, mas temos também páginas em branco esperando para serem escritas e o melhor de tudo, isso depende exclusivamente de nós.
Se é um sonho não sei, mas temos que lutar e trabalhar para que nosso país seja protagonista em toda a cadeia do café, pois vejo isso como evolução de todos nós envolvidos nesta cadeia magnifica.
Nos vemos na 4º onda do café, epicentro: Brasil.