Trinta e três anos após a redescoberta das leis de Mendel foi criada a Seção de Genética no Instituto Agronômico de Campinas tendo C. A. Krug elaborado um abrangente plano de melhoramento do café baseado principalmente em genética, citogenética, botânica, recursos genéticos e intensiva experimentação de campo. Sua execução, liderada por mais de 50 anos por Alcides Carvalho, continua até o presente, seguindo em linhas gerais o conceito básico original, modificado apenas ao longo dos anos nas características específicas a serem selecionadas e respectivas metodologias para sua seleção. Além dos objetivos tradicionais como longevidade, vigor, adaptação ampla e produtividade incorporaram-se também no decorrer desse programa, vários outros como resistência à ferrugem, ao bicho-mineiro, aos nematóides, porte reduzido, adaptação regional, situações culturais ou demandas especiais (Medina Filho et al., 2007a). Entre eles, encontra-se o melhoramento para a qualidade. Neste trabalho é apresentada uma síntese das principais investigações e da complexidade envolvida na seleção de cafeeiros visando melhor qualidade da bebida.
Qualidade: conceito e dificuldades no melhoramento
Qualidade não é um simples parâmetro a ser medido, ao contrário, trata-se de conceito amplo e dependente de uma série de fatores (Carvalho et al., 1997) que estabelecem limites a ela. A qualidade pode se referir, por exemplo, à espécie Coffea arabica ou a alguma cultivar dessa espécie ou pode se limitar à uma região, local, ano de cultivo, práticas culturais adotadas, tipo de processamento pós-colheita, cuidados e estratégias de secagem e armazenamento, classificações diversas dos grãos verdes, condições e graus de torra, moagem, acondicionamento do produto, forma de preparo, extração da bebida, entre outros. Esses e muitos outros aspectos dos quais o conceito qualidade depende e à eles é limitado visam a melhor adequação do produto aos diversos setores da cadeia produtiva.
Para o consumidor final, o conceito depende ainda da sua própria preferência, da sua análise intuitiva de custo-benefício e até das interações favoráveis da infusão com as adições de açúcar, adoçantes, leite, etc. Em escopo menos amplo, a qualidade pode ser definida por atributos gerais mais padronizados reconhecidos nos cafés de altitude, como infusões encorpadas, sabor achocolatado ou pela classificação oficial como mole ou estritamente mole.
Provadores profissionais, exportadores e importadores exprimem, além da classificação padrão, características mais detalhadas pontuando ou quantificando o aroma, doçura, corpo, acidez, retrogosto, e também outros padrões subjetivos tentando exprimir pela linguagem a multitude de sensações experimentadas pelo olfato e paladar e, com isso, valorizando mais ou menos o produto e estabelecendo diretrizes para mistura de lotes visando atender às demandas de mercado.
A complexidade do controle e da análise organoléptica do café torrado relaciona-se às mais de 850 substancias químicas que compõem o aroma e o sabor da infusão, as quais, em concentrações diversas, algumas em PPB podem se expressar per se ou interagir em sinergia imprimindo o resultado no aroma e sabor final. Nesse contexto ainda, não se pode desconsiderar a variação na sensibilidade dos provadores, sua interação com a característica sensorial de alguns compostos chave da infusão e ainda a existência de marcantes discordâncias entre provadores, principalmente se forem especializados em provas de café de regiões distintas, acostumando-se às variações restritas a determinados padrões. Indagado a esse respeito, conceituado provador afirmou certa vez que em sua ampla experiência de júri internacional de provas de café aprendeu "concordar em discordar".
Milhares de estudos têm estabelecido certas normas, padrões e correlações de procedimentos com a boa qualidade da bebida. Entretanto, a regra mais geral que se observa pela atenta análise da literatura científica e pelo envolvimento na prática é que as exceções às regras são freqüentes. Não existe erro, mas apenas complexidade científica englobando muitas variações e interações não controláveis. Para ilustrar, deparou-se com o seguinte caso relacionando a maturação dos frutos com a qualidade da bebida. A importância da maturação é bem conhecida, sendo conceito estabelecido que a melhor qualidade é obtida com frutos no auge do estádio cereja, perfeitamente maduros, fornecendo aqueles colhidos antes ou depois desta fase, qualidade inferior. Não raro, porém, obtêm-se resultados experimentais surpreendentemente adversos a esse fato sedimentado, mesmo quando se faz um minucioso controle da fase de maturação pelo teor de açúcar dos frutos e um rigoroso monitoramento das amostras.
Exemplificando, em um experimento no qual, de uma mesma amostra, se separaram sub-amostras em 11 classes de maturação (verdoengo à passa) diferindo em apenas 2% de açúcar, obteve-se, com qualificado provador, notas mais altas para qualidade global (10 atributos, método BSCA) nas classes correspondentes aos frutos mais verdes e notas mais baixas correspondentes às melhores fases de maturação.
O melhoramento genético para qualidade torna-se, assim, difícil ao envolver critérios diversos, interações genótipo-ambiente desconhecidas, avaliações muitas vezes subjetivas que comprometem a repetitividade experimental e, com isso, a eficiência da seleção. Não obstante tais dificuldades, procura-se diminuir da melhor forma possível as influências ambientais, para permitir a distinção do aroma, sabor e suas nuances nos cafés como uma característica intrínseca das espécies, variedades e mutantes do diversificado germoplasma em investigação. Assim, materiais em estudo devem ser oriundos de mesmo local e, colhidos, processados, preparados e avaliados em condições comparativas (Figura A).
O amplo germoplasma disponível no IAC em Campinas tem sido dessa forma, objeto dessas investigações sobre a qualidade do café avaliando-se, na medida do exequível, as infusões não somente pelas metodologias tradicionais (IBC, 1985; IOC, 1991; Toledo e Barbosa, 1998; Ministério da Agricultura, 2003) (Figura B) e auxilio de provadores especializados, como também testando e registrando-se as sensações bucais e olfativas do aroma e sabor das amostras submetidas às preparações pelo sistema espresso e percoladas (Figura C).
Diversidade genética existente
O aroma e sabor do café são características e o resultado de sua avaliação é, na terminologia genética, fenótipos. Como tal, suas expressões simplificadamente dependem de seus genótipos, do ambiente considerado e também da interação entre eles. Assim, é evidente que para se fazer melhoramento genético é preciso existir variabilidade de genótipos, questão básica investigada há mais de duas décadas quando se realizaram avaliações de nove diferentes cafés Arábicas cultivados e processados em Campinas e testados por 12 diferentes provadores em quatro repetições para 26 características sensoriais pelo Dr. Pedro Kari na Organização Internacional do Café, na Inglaterra (Medina Filho, 2007).
Nesse estudo, a análise estatística de componentes principais indicou que as principais diferenças dos perfis de sabor eram devidas às diferenças na constituição genética dos diferentes materiais de C. arabica. Com essa informação, procurou-se, subjetiva, porém cuidadosamente, conhecer a diversidade do germoplasma existente em Campinas investigando-se a qualidade do maior número possível de espécies, híbridos, mutantes e formas botânicas.
Verificou-se em uma série de estudos que o aroma e o sabor de café apresentaram problemas em graus diversos nas espécies silvestres, em algumas linhagens antigas de Icatú, alguns Aramosas, alguns mutantes de arábica e em algumas introduções da Etiópia. Mostraram-se normais em Catuaí, Mundo Novo, Sumatra, algumas linhagens de Icatú e de Aramosa, Laurina, Caturra, Obatã, Tupi e na maioria das introduções da Etiópia.
Perfis mais favoráveis foram detectados no Bourbon Amarelo, Bourbon Vermelho, Ouro Verde, Pacas, Abramulosa, Cioice, Geisha, Enarea e Agaro. Um grupo se destacou porém, pelos excelentes aroma e sabor e que foram o Mokka Pequeno, Mokka Grande e o Ibairi, os três portadores homozigotos do alelo Mo. A partir dessas informações, cruzamentos e seleções visaram o aproveitamento desse alelo no melhoramento ante a aparente facilidade de se trabalhar com uma característica monogênica. Entre outros materiais, investigou-se também mais pormenorizadamente a utilização da introdução Glaucia como explicado adiante. Entre as espécies silvestres, a que se mostrou de alguma forma favorável foi C. eugenioides tendo, as demais, sabores desagradáveis. Essa espécie é de especial interesse, pois se sabe que, juntamente com C. canephora ou C. congensis, é uma das espécies parentais de C. arabica. Tenta-se também aproveitar C. eugenioides no melhoramento para qualidade de C. canephora.
Os porta-enxertos e a qualidade
A influência de porta-enxertos na qualidade do café tem sido também objeto de investigação. Sabe-se que em outras culturas, existem amplas e variadas interações entre a copa e o porta-enxerto que afetam não somente resistência a agentes bióticos específicos, como também características vegetativas e comerciais dos seus produtos.
Nos citros, por exemplo, (Bordignon et al., 2007) é explorada comercialmente a enxertia de laranjas doce (Citrus sinensis) sobre Poncirus trifoliata que induz considerável aumento na coloração interna, teor de açúcar e sabor dos frutos da copa. O uso comercial da enxertia no cafeeiro data do final do século retrasado e foi preconizado por G. van Riemsdijk, agricultor da ilha de Java na Indonésia, que desenvolveu, para Coffea canephora, a técnica para utilização em larga escala visando o controle de nematóides, multiplicação de híbridos e fixação imediata de características como aumento e uniformidade de produção (Cramer, 1957).
Foi, no entanto, inicialmente pouco difundida devido às implicações técnico-economicas e à baixa exigência dos agricultores e do mercado consumidor do Robusta para a uniformidade do produto. Posteriormente com o desenvolvimento de cultivares mais uniformes multiplicados por sementes e a eficiente propagação de cultivares clonais (Bragança et al., 2001; Fonseca et al., 2004) por estacas reduziu-se ainda mais o interesse pela enxertia em C. canephora. Com finalidades e resultados diversos, a influência do porta-enxerto em copas de C. arabica tem sido relatada já há muito tempo (Chevalier, 1929; Mendes, 1938; Melo et al., 1976; Fahl e Carelli, 1985; Tomaz et al., 2003).
Em C. arabica, a produção de mudas enxertadas para o controle de nematóides (Costa et al., 1991; Paulo et al., 2006) se tornou comercial com o aprimoramento da técnica de enxertos hipocotiledonares (Reina, 1966; Moraes e Franco, 1973) de C. arabica em porta-enxertos de C. canephora cv. Apoatã (Fazuoli et al., 1983). Em Campinas tem-se investigado a influência de porta-enxertos nas copas da cultivar Obatã enxertada em amplo germoplasma de Coffea e, sob diversos aspectos, comparada com plantas de pé-franco da mesma cultivar. Os porta-enxertos utilizados, obtidos de livre polinização, compreendem atualmente 890 plantas de 70 progênies estudados individualmente e analisados estatisticamente em 15 grupos de acessos, híbridos e derivados diversos envolvendo as espécies C. arabica, C. canephora, C. eugenioides, C. racemosa, C. salvatrix, C. kapakata, C. dewevrei, C. liberica e C. Stenophylla.
Apesar dos porta-enxertos terem influenciado várias características agronômicas na copa de Obatã (Figura D), a qualidade da bebida produzida nas copas quando analisada em relação aos 15 grupos de porta-enxertos não se modificou quando comparada à bebida produzida nas copas das plantas de pés franco. Se, por um lado não se obteve progresso para qualidade, por outro lado, possíveis vantagens agronômicas que possam advir da enxertia hipocotiledonar de C. arabica não são prejudicadas por uma menor qualidade dos frutos produzidos. Esses estudos prosseguem, pois esse resultado geral não exclui, porém a possibilidade de encontrarem-se plantas específicas entre as representantes de cada grupo de germoplasma de porta-enxerto que influenciem favoravelmente a qualidade dos grãos produzidos pela copa neles enxertada, pois a julgar pelo vigor há variações entre plantas do mesmo grupo de porta-enxerto (Figura E).
Na segunda parte do artigo, que será publicada em breve, serão descritas características desejáveis de algumas variedades e espécies.