Por Giuliana Bastos
Precisa-se de profissional com olfato e paladar aguçados, visão global, conhecimentos em botânica, química e geografia, boa condição física e, acima de tudo, paixão por uma boa xícara. Quem se candidata? Os superespecialistas em café, também conhecidos como coffee hunters (expressão em inglês para “caçadores de café”). O ofício, que já existe há cerca de dez anos nos Estados Unidos, está ganhando força no Brasil, acompanhando o crescimento do mercado de cafés especiais.
As duas preciosidades, os experts e os grãos, estão diretamente relacionadas. “O mercado no Brasil está se ampliando e se consolidando, é natural que haja uma procura maior por profissionais de visão holística”, explica Ensei Neto, que oferece um treinamento exclusivo para esses conhecedores. Ele conta que no início a profissão era vista como exótica, mas que frequentemente fazia um percurso similar para apresentar nossa produção de cafés a grupos de estrangeiros em busca de grãos com características peculiares.
Aos poucos, a demanda foi tomando forma. Mais apreciadores consumindo cafés únicos, mais baristas estudando a melhor forma de prepará-los, mais proprietários de cafeterias desenvolvendo blends próprios, mais produtores torrando seu próprio café e tendo de entender esse outro lado da cadeia produtiva do café, com o qual nunca haviam se deparado. Um ciclo positivo para todos os profissionais envolvidos no setor. Uma área que, no Brasil, é responsável por mais de 50 milhões de sacas. Sorte dos superespecialistas em café, que têm todo um universo para explorar a poucos quilômetros de distância. Sorte dos consumidores, carentes de informações e de grãos que proporcionem experiências únicas.
Sérgio Junqueira Dias, proprietário do Sítio Canaã State Coffee, em Carmo de Minas (MG)
Botina no pé e bússola na mão
Com a consolidação, uma dificuldade: de qual fonte beber? Mais uma vez um passo atrás, mas sempre em frente, o mercado brasileiro buscou referência fora. Ensei conta que alguns de seus amigos, especialistas de outros países, começaram a ser reconhecidos como coffee hunters por apresentarem uma formação profissional bastante completa, com conhecimentos em engenharia, biologia, gastronomia e que, para se aprofundarem, passavam anos em fazendas vivenciando o dia a dia do cafeicultor. “Eles conseguiram assim adquirir uma visão como a de águia, de voo panorâmico, ao mesmo tempo entendendo onde e como cada peça se encaixa, com um sentimento claro do que os consumidores querem”, explica Ensei.
Esse é o mote do treinamento desenvolvido pelo especialista. O “coaching” inclui visitas técnicas a fazendas e armazéns, discussões, além de provas, torra e avaliação de cafés em laboratórios. É um intensivão que acontece apenas uma vez ao ano, com sete dias de campo escolhidos a dedo entre junho e julho, temporada de colheita no Brasil. Na segunda fase, os alunos ficam cinco dias mergulhados em laboratório para a torra, prova e análise dos grãos no Centro de Preparação de Café, do Sindicafé-SP. “É intenso, mas vale a pena”, afirma André Almeida, de 32 anos, responsável pela compra de cafés da Cafeteria do Museu, em Santos. “Não estou acostumado a visitar fazendas e, com o treinamento, pude ter acesso a esse outro lado e passei a entender a lógica da produção de qualidade e investir mais na oferta desse tipo de café.”
Virada na carreira
A experiência, no entanto, não vale para qualquer um. São centenas de quilômetros percorridos, centenas de horas de visitas a fazendas sob sol escaldante, dezenas de frutinhas provadas no pé (incluindo algumas não tão prazerosas) e muitas, muitas xícaras de café. Além da boa vontade, é necessário um conhecimento aprofundado, que inclui a identificação de componentes geográficos e sua influência no desenvolvimento do grão, além das diferentes etapas do processamento do café – da escolha da variedade ao ponto de torra ideal para cada lote.
Os agrônomos acabam se dando bem, mas a carreira pode ser um caminho interessante também para baristas, cafeicultores, degustadores, classificadores, entre outros. No mercado internacional, por exemplo, há mestres de torra que, na procura por cafés especialíssimos para suas torrefações, acabam aprofundando tanto seus conhecimentos no tema que já são considerados coffee hunters.
Proprietários de cafeterias também são bem-vindos. É o caso de Rodrigo Menezes Ramos, do Ateliê do Grão, em Goiânia. Para oferecer mesclas exclusivas focadas em microlotes, o empresário investiu em pesquisa e, de tempos em tempos, parte em direção a pequenas propriedades de café. Um exemplo é o Grand Cru Volcano, um catuaí de origem vulcânica, da região do Cerrado Mineiro. Em seu rótulo, informações como a origem, o nome do produtor e até a latitude do cafezal. Todo esse esmero é o resultado de dois elementos: a paixão de Rodrigo pelo café – segundo ele, quase equivalente à que tem pelo Corinthians – e tudo o que apreendeu no curso de Ensei.
Também dono de uma cafeteria, a Genot Cafés Especiais, em Natal (RN), Paulo Guillén é outro que está transitando de aficionado para especialista. “É a segunda edição do curso de que participo e tem me ajudado muito a perceber a qualidade e a encontrar os perfis dos lotes que quero oferecer”, diz. Ele conta que, além de aprender a degustar, o projeto Coffee Hunters “impulsiona o trabalho com cafés especiais, pois possibilita um contato direto com o produtor”.
Vista panorâmica da Fazenda Sertão, em Carmo de Minas (MG), terra fértil para analisar o posicionamento dos cafezais.
Qualidade possível
Participar desse dia a dia com o cafeicultor faz toda a diferença. Nas visitas às fazendas, vão-se os livros e as apostilas e esse conhecimento se torna uma realidade compreensível. Foi o que aconteceu na visita ao Rancho São Benedito, em Dom Viçoso, Sul de Minas. Todos na premiada fazenda, focada na produção de cafés especiais, estavam aflitos. A preocupação com a chuva que se aproximava era evidente. A equipe chegou pela manhã à fazenda, ainda ensolarada. Mas o céu começava a escurecer. “Sinal de colheita complicada”, explica Ensei.
Deu tempo, no entanto de seguir em direção ao cafezal, apinhado de bourbons e catucaís em cereja, lindas, docinhas, mas ainda no pé, à espera dos colhedores. No terreiro, um lote já estava secando. Termômetro em punho, Ensei aproveita para explicar sobre a temperatura mais adequada para os pátios. Sorte: o grupo sai ileso e termina a visita antes de a chuva chegar.
Na visita ao Sítio Canaã, lição importante já na entrada, onde um terreiro exibia um pequeno lote de café secando e exalando aromas agradáveis. “Tudo o que é bom cheira ao que é”, crava Ensei. Um pouco depois, o grupo estava degustando e se surpreendendo com o café na sala de prova da fazenda. Na Fazenda Sertão, uma oportunidade interessante: conhecer um dos terreiros mais altos do Brasil, cuja ventilação e faceamento para o sol foram temas de algumas conversas ao longo do dia. “Café top, raro, caro se trata com carinho”, brinca o produtor Francisco Izidro Dias Pereira, cuja fazenda está entre as mais premiadas do País.
Após as visitas, um tempinho para descansar, jantar, uma rodada de espressos e filtrados em cafeterias próximas e, de volta ao hotel, hora do chamado Fórum Noturno. A reunião em torno do tema preferido do grupo é uma espécie de avaliação do que se apreendeu no dia. Apesar do cansaço, as ideias e conclusões do que se viu parecem fervilhar. Diferentemente das visitas, onde os alunos estão apenas observando e perguntando, a conversa é o momento em que se pode falar, trocar ideias, compartilhar outras experiências e referências externas. Um filme que aborda o tema tratado, um caso que aconteceu em outra região, uma safra que enfrentou o mesmo problema da atual.
É o momento também de definir a agenda dos próximos dias. A viagem seguiria para a cidade de Jacarezinho, o Norte Pioneiro do Paraná, mas essa visita teve de ser cancelada por causa das fortes chuvas que atingiram o local durante aquele período. Intempéries típicas do trabalho agrícola e da vida em meio à natureza. O jeito foi seguir para a Fazenda Palmares, em Amparo (SP), e para a Fazenda Santa Margarida, onde os experts acompanharam de perto o trabalho que Mariano Martins está desenvolvendo para lavar seus cafés à moda da América Central. Alguns meses depois, a oportunidade de torrar e provar alguns dos cafés vistos no pé. E mais alguns sentidos são explorados. Mais conhecimentos adquiridos e a conclusão de que a experiência foi apenas um dos muitos passos para se tornar um coffee hunter. Mas valeu.
Francisco Isidro Dias Pereira, proprietário da Fazenda Sertão, uma das mais premiadas da região de Carmo.
O que um superespecialista em café deve saber?
• A influência dos componentes geográficos e dos processos de produção na xícara
• Reconhecer as diferentes variedades de cafeeiros e seus frutos, suas características agronômicas e fisiológicas, e potencialidades para a qualidade da bebida
• Compreender os impactos dos diferentes tipos de secagem de café na xícara
• Compreender critérios para escolher os processos de seleção dos grãos de café (por tamanho e formato, por densidade e por cor)
• Identificar os principais defeitos e problemas de natureza intrínseca e extrínseca
• Torrar, avaliar e desvendar potencialidades de cada lote de café
• Compreender as curvas de torra padrão para cada lote
• Desenvolver diferentes perfis de torra para cada lote
• Estimar os efeitos na xícara devido às características do grão, do processo industrial e do tipo de extração.
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*Confira a reportagem completa publicada pelo site da Revista Espresso, que inclui também a Ficha técnica da fazenda.
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(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso [em 2013 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Saiba como assinar).