Uma pesquisa realizada por profissionais da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), em parceria com o Instituto Federal Catarinense (IFC) campus Araquari e o Instituto Federal do Sul de Minas campus de Machado, aponta o crescimento de cafezais no Leste de Santa Catarina, sob a sombra da Mata Atlântica ou de outros cultivos agrícolas.
O estudo comprovou que o café arábica da variedade mundo novo, produzido sob a sombra de bananais orgânicos em Araquari, se enquadra como café especial e concluiu ainda que Santa Catarina possui áreas com condições climáticas potencialmente aptas para o cultivo de café arábica especial, considerando a colheita seletiva e adequado processamento pós-colheita para explorar a máxima qualidade sensorial e evitar defeitos físicos nos grãos.
A pesquisa reforça a necessidade de mais estudos, tanto sobre a adaptabilidade do grão ao litoral catarinense, como do manejo de cultivo e pós-colheita. Wilian Ricce e Fábio Zambonim, pesquisadores da Epagri/Ciram, delimitaram o mapa com a região potencialmente apta, de acordo com o clima, para o cultivo de arábica no estado.
Com base nestes resultados iniciais, a Epagri submeteu projeto de pesquisa à Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), para ampliar o estudo sobre cafés especiais no estado. Os resultados do edital de submissão ainda não foram divulgados pela Fapesc.
“Queremos mostrar o potencial que tem o café especial arábica para a região litorânea de Santa Catarina. Cultivado em sistemas agroflorestais, ele pode ser usado como estratégias de restauração e uso econômico de áreas de preservação permanente nas propriedades rurais familiares”, descreve Fábio, pesquisador da Epagri. Ele lembra que a expansão da cultura no Estado teria apelo ambiental e também econômico. “Tem muito agricultor familiar indo bem economicamente com essa cultura”, relata.
Histórico
A cafeicultura já foi uma atividade de expressão econômica em Santa Catarina. Prova disso é a bandeira do estado, criada em 1895, que traz a imagem de um ramo de café com frutos. “As primeiras plantações de café em Santa Catarina foram estabelecidas no final do século XVIII e, apesar de sua pequena escala, quando comparada às grandes lavouras da região Sudeste do Brasil, o produto catarinense sempre se destacou pela sua qualidade”, avalia Fernando Prates Bisso, professor do IFC-Campus Araquari e um dos autores do estudo. Ele conta que, frequentemente, os grãos colhidos no território catarinense eram utilizados para compor e melhorar lotes exportados para mercados mais exigentes, como Uruguai e Holanda.
O cenário mudou na década de 1960, como resultado de uma política pública nacional de erradicação de cafezais para regulação dos estoques mundiais do grão. A partir daí a produção de café no Leste catarinense migrou do status comercial para uma cultura de subsistência. No entanto, levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, mostrou que pequenos cultivos isolados se mantiveram em 15 municípios de Sul ao Norte da costa catarinense, evidenciando a adaptabilidade da cultura às condições de clima e relevo da região.
O sistema de produção e de colheita adotado na região produtora de café no estado foi o diferencial que garantiu a qualidade do produto catarinense quando era produzido em escala comercial. Os pesquisadores explicam que, cultivado preferencialmente sob a sombra de espécies arbóreas da Floresta Atlântica, o café arábica se adaptou e se desenvolveu muito bem no litoral do estado. A colheita dos frutos, realizada predominantemente de forma seletiva e escalonada ao longo da safra, garantia que os frutos fossem coletados no ponto ideal de maturação, atividade trabalhosa e onerosa, porém viável no contexto típico das propriedades rurais familiares.
A produção de café em regiões de planícies costeiras, vales e encostas de morros do litoral de Santa Catarina, em sistemas sombreados por espécies arbóreas nativas, bananeiras e palmeiras juçara, chamou a atenção do professor Fernando assim que chegou à região. “Inicialmente, fiquei curioso sobre qual seria o significado de um ramo de café na bandeira”, conta o professor. Em seus estudos, iniciados em 2013, ele percebeu que existe uma rica tradição cultural que resiste ao tempo em inúmeras famílias de agricultores que ainda cultivam o café para sua subsistência, preservando os hábitos e o conhecimento tradicional de seus antepassados.
Extensão
Aspectos de mercado de cafés especiais e do sistema produtivo agroflorestal que o caracteriza em Santa Catarina despertaram o interesse da pesquisa agropecuária, da extensão rural, de gestores públicos, de produtores rurais e da iniciativa privada.
Em Major Gercino, município da Grande Florianópolis, o extensionista da Epagri, Remy Narciso Simão, iniciou um trabalho em parceria com o agricultor Amauri Batisti na implantação de 1,8 hectare de cafés arábica das variedades icatu, tupi e também de plantas formadas com sementes de cafezais tradicionais da região. O extensionista aposta que a cultura do café, que faz parte da tradição dos agricultores do Vale do Rio Tijucas, pode ser uma importante fonte de renda associada à manutenção da cobertura florestal existente no município.
No litoral Norte do estado, no município de São Francisco do Sul, o extensionista da Epagri, Claudio Souza, observa que, na comunidade da Vila da Gloria, os cafezais são cultivados sob cobertura de árvores nativas. Segundo ele, apesar da produtividade não ser considerada alta, os valores obtidos com a comercialização do café torrado e moído pelos agricultores diretamente aos consumidores tornam a atividade importante fonte de renda complementar às propriedades.
No município do José Boiteux, no Alto Vale, o jovem agricultor Matheus Eliaser Lunelli recebeu orientação da extensionista da Epagri, Deborah Ingrid de Souza, para aderir à produção de café no sistema agroflorestal, mas quem deu a ideia foi o avô do Matheus. “O pai dele tinha café plantado e produzia muito bem na nossa propriedade”, conta o agricultor, que recentemente implantou 150 pés numa área de 600 metros quadrados. Ele se diz muito satisfeito com os resultados obtidos até o momento: “dá para ver que todas as plantas estão se adaptando muito bem ao sistema e estão todas bem sadias”.
Deborah conta que a escolha do café para montar o sistema agroflorestal na propriedade de Matheus resgata a cultura e o potencial do Alto Vale para esse cultivo, dada suas características geográficas e de clima. Segundo ela, o grão produzido em sistema agroflorestal se aproxima das condições originais do café, que é uma planta de sub-bosque, ou seja, se desenvolve na companhia e à sombra de outras espécies, o que proporciona ao fruto final uma composição mais interessante, com mais açúcares e outros elementos diferenciados.
A extensionista acredita que, apesar de o cultivo na propriedade de Matheus ter apenas quatro meses, vai dar certo, com a primeira colheita a ser realizada em dois anos. “O grande desafio vem depois, o beneficiamento do grão”, afirma. A intenção de Deborah é que essa cultura agrícola volte a compor o mosaico das propriedades rurais familiares do Alto Vale, não só como resgate de uma tradição, mas também como uma nova alternativa de renda para os agricultores locais. Ela também destaca o aspecto ambiental, já que o sistema é agroecológico, ou seja, não usa agrotóxicos e adubos químicos.
Em Itapema, iniciativas interessantes do cultivo agroflorestal de café têm garantido a renda de produtores rurais familiares. Os agricultores Selmo Manoel Santos e seu genro Renato Alberto de Souza, integrantes do Grupo Ecológico Costa Esmeralda, cultivam cerca de 600 plantas de café em sistema agroflorestal consorciado com banana, com certificação orgânica pela Rede Ecovida. Inseridas em reserva de Mata Atlântica e sob influência da brisa marítima, as plantas desenvolvem-se em condições específicas de microclima, que influenciam e conferem uma identidade própria na qualidade dos grãos e da bebida. Todo o café produzido é beneficiado pelos próprios produtores, que, assim, agregam valor à produção comercializada na feira de orgânicos do município.
A família vivencia o seu cultivo há muito tempo, sendo uma das pioneiras na região. Renato relata com tristeza a derrubada dos cafezais que ocorreu na região na década de 1960. Entretanto, há cerca de 15 anos, a família retomou progressivamente o cultivo comercial do café e agora renova o seu pioneirismo como referência na cafeicultura regional.
A Associação dos Bananicultores de Corupá (Asbanco), idealizadora do projeto de Indicação Geográfica (IG) de Denominação de Origem (DO) da Região de Corupá como produtora da Banana Mais Doce do Brasil, agora vislumbra o potencial econômico de cafés especiais sombreados pelas lavouras de banana, principal atividade econômica do município. “Corupá é uma região rica em história e nossos agricultores mantém a tradição do cultivo de café para consumo da família há mais de 80 anos. Não imaginávamos que nosso café teria os atributos e seria classificado como café especial, o que muito nos orgulha”, comenta Eliane Müller, diretora administrativa da Asbanco.
O agricultor Guido Tandeck, o primeiro em Corupá a participar do projeto de resgate da cafeicultura desenvolvido pelo IFC-Araquari, relata que em sua casa nunca se comprou café no mercado, sempre se consumiu a produção própria. “Depois de colher, secamos os grãos no sótão da casa e deixamos descansar por um ano para depois torrar e moer, tradição que aprendi com meus pais e hoje repasso para meu filho. Nunca imaginei que poderia ser especial, para nós era só café”, relata, admirado.
O projeto de resgate da cafeicultura catarinense conta com a colaboração de Leandro Carlos Paiva, renomado mestre em torra e barista, professor titular de agroindústria e qualidade do café do IF Sul de Minas – Campus Machado e Diretor do Polo de Inovação Agroindústria do Café. “Santa Catarina é privilegiada por uma latitude que, para quem entende de cafés especiais, não oferece a necessidade de ter suas lavouras em altitude, para que o café apresente qualidade diferenciada. Seu clima único favorece a produção de cafés diferenciados no mundo. O que falta é um estudo sobre esses efeitos, para descobrir como e quanto é especial o café catarinense”, comenta.
Os resultados iniciais do estudo com amostras de cafés de Santa Catarina foram bastante promissores, com algumas chegando a obter pontuação média dos descritores superior a 85 pontos, revelando cafés especiais de qualidade excelente, de acordo com a escala de classificação da Specialty Coffee Association (SCA).
Amostras recentes de café procedentes de vários municípios, como Araquari, Itapema e Corupá, e que foram beneficiadas pelos próprios agricultores, seguindo seus próprios métodos familiares tradicionais, também revelaram pontuação de cafés especiais de muito boa qualidade, entre 81 e 84,17 pontos. “Dependendo da procedência da amostra e seus atributos sensoriais, os descritores encontraram diferentes características de aroma e sabor entre os cafés catarinenses, entre elas: caramelo, chocolate, doce, ácido cítrico, frutado e verde, o que confirma a diversidade da cultura em SC e que confere com a identidade única de cada café especial”, finaliza satisfeito o professor Fernando.
As informações são da Epagri.