Por Cristiana Couto
[O texto a seguir é a continuação da entrevista com o cientista Flávio Borém publicada na edição de março-abril-maio da Revista Espresso. Optamos por reproduzir, da edição impressa, a introdução ao bate-papo].
Com fala mansa e didática nas palestras que profere, o engenheiro agrônomo Flávio Meira Borém, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), prende a atenção de um público diverso. Mas o cientista mineiro, doutor em produção vegetal e com quase 30 anos de pesquisas em cafés especiais, também atrai a comunidade científica global pelos artigos que publica. Seu trabalho, porém, não fica preso ao papel, já que Borém transporta o conhecimento que produziu na universidade para o campo, como consultor especialista em pós-colheita dos grãos de qualidade.
Autor de Tecnologia pós-colheita e qualidade de cafés especiais, lançado em meados de 2023, e editor-chefe da Coffee Science, revista técnico-científica especializada em cafeicultura, Borém não para de quebrar paradigmas. Como aconteceu em 2015 no Re:co Symposium, evento internacional com líderes e especialistas da indústria de especiais que discute inovações, desafios e oportunidades no setor. Em sua exposição, demonstrou que a consistência e a qualidade dos cafés depende da integridade das membranas celulares dos grãos, qualquer que seja o método de processamento, quebrando o paradigma de que cafés naturais são inferiores em qualidade.
Entre suas inovações recentes está uma linha de cafés de alta qualidade – um, com alto teor de cafeína e outro, com atividade antioxidante (a partir de frutos imaturos) –, que serve na Borém Cafés Especiais, cafeteria e torrefação que abriu há pouco mais de dois anos em Lavras (MG). O próximo projeto é o desenvolvimento de um secador para cafés especiais. A seguir, a entrevista remota com Flávio Borém.
Espresso: Em seu livro, há um capítulo sobre a contribuição do ambiente, da genética e do pós-colheita do grão na expressão da qualidade da bebida. Como esses aspectos interferem no café?
Borém: Gosto de criar a imagem fonte-receptor de sinal. Fonte são os fatores que, potencialmente, afetam a qualidade do café, como solo, nutrição, rocha de origem, variedade, clima e ambiente. Eles emitem um sinal que percorre vários pontos – colheita, processamento, secagem, armazenamento, além de torra, preparo e extração do café – até chegar ao receptor final, o consumidor, em uma xícara com menos de 2% de café (porque o restante é água). Esse sistema é complexo, tem “n” ruídos, e esse sinal (2% de café) chega fraco ao receptor. Aumentar a sensibilidade do sensor (o nariz) não é possível. Conseguimos um pouco por meio de educação e treinamento, mas há um limite. Então, para que esse sensor seja capaz de detectar variedade ou diferença de solo num café, o sinal tem que ser gigante.
Você também afirma em seu livro que a temperatura é o principal fator ambiental na produção de especiais. E que, geralmente, a média de temperatura é a explicação comum para o prolongamento ou antecipação da maturação do fruto. Esta ainda é a explicação mais aceita?
Essa é a explicação disponível, que a maioria de técnicos e produtores conhecem. Mas existem outras. O efeito da temperatura média do ambiente é, de fato, muito relevante, assim como o efeito do solo, mas ela não explica tudo. Existem outras informações que estão sendo adicionadas a este conjunto de conhecimento e que ampliam nossa visão sobre o fenômeno da expressão da qualidade no ambiente.
Esta é uma linha de pesquisa a que me dedico muito pois, afinal, porque este café bebe de um jeito e aquele bebe de outra maneira? Atualmente, existem outras abordagens, como o sistema antioxidante da planta, por exemplo.
O café é produzido a partir de uma semente (grão) crua. Essa semente tem determinadas funções na planta, como acumular reservas para que, quando for plantada, produza uma nova planta. Isso significa que o que é depositado na semente tem, geneticamente, uma informação diferente do que é depositado no mel do café.
Então, dependendo do que a planta interpreta a partir do ambiente, ela “pensa”: “existe um risco aqui, então vou encher a semente de compostos protetores”. Esses compostos, geralmente, não são saborosos, mas amargos, adstringentes. Há, portanto, muito mais do que um prolongamento do período para acúmulo: temos estímulos diferentes que, no DNA do café, vão abrir determinados setores que ora vão produzir determinados compostos, ora não vão produzi-los.
Assim, não é somente em altas altitudes que a semente acumula mais. Na verdade, é em baixas altitudes que existe uma produção maior de carboidratos do que nas altas altitudes, porque há mais luz em lugares mais baixos, ou seja, a fotossíntese é maior. Porém, nas baixas altitudes, também é maior a produção de espécies reativas ao oxigênio (EROs), como o peróxido de hidrogênio. Em altitudes maiores, ao contrário, a respiração (que ocorre à noite) do cafeeiro é menor e ele produz menos EROs e mais ácido ascórbico, por exemplo. Entretanto, quando, em baixas altitudes, a respiração noturna é maior e produz-se muitas EROs, o sistema enzimático das plantas é capaz de remover esses radicais livres (em altas altitudes, ele é menos ativo).
O peróxido de hidrogênio e outras EROs causam danos à membrana do fruto, o que reduz seu período de maturação mas, por outro lado, faz com que haja a produção de mais compostos (determinados isômeros de ácidos clorogênicos, por exemplo) que alteram completamente a composição química do café cultivado em baixas altitudes se o compararmos aos frutos cultivados em altitudes elevadas. O que estou querendo com toda essa explicação é trazer uma visão contrária à tradicionalmente aceita.
O importante não é apenas o acúmulo de compostos no fruto, pois ele pode acumular coisas boas ou coisas que não são boas. Assim, o que significa maior período de maturação? Há um maior acúmulo de quê? De açúcar?
A quantidade de açúcar é um determinante de qualidade em cafés?
Não, o teor de açúcar não está necessariamente relacionado à qualidade da bebida do café. A qualidade dela está mais relacionada a outros compostos, que estão em concentrações mais baixas e com maior potencial na produção de voláteis. Assim, não é, necessariamente, a quantidade desses compostos que definem seu poder odorante, mas a capacidade que eles têm de estimular nossas terminações nervosas. Então, existem compostos voláteis que, mesmo em baixíssima concentração, têm um poder odorante altíssimo.
Os tipos de compostos voláteis, por sua vez, dependem de precursores, da condição em que uma variedade está num determinado ambiente, ou seja, dependem do genótipo, da resposta desse genótipo ao estímulo do ambiente para que a planta, por sua vez, possa produzir precursores, açúcares, aminoácidos, proteínas etc. Estes cafés podem formar, durante a torra, compostos aromáticos agradáveis ou, dependendo das condições da torra, acumular mais compostos precursores de adstringência, de amargor.
É o genótipo que vai expressar, então, a bebida. O que alguns autores aceitam e outros não é a expressão fenotípica do café. O fenótipo é a expressão do genótipo que nós podemos ver. Então, a bebida do café é uma expressão – que passou por processamento, industrialização e método de produção –, mas que está diretamente relacionada ao genótipo da planta e a como esse genótipo respondeu ao ambiente em que ela se desenvolveu (entenda-se ambiente, aqui, como condições edafoclimáticas).
Lembro-me que você abriu sua palestra no Intertorra, durante a Semana Internacional do Café 2023, dizendo que não dá pra dizer que um café depende do fator X, Y ou Z. Ou seja, a base de tudo é o genótipo da planta?
Gosto de dizer que a qualidade do café é formada na lavoura, mas ela é definida no pós-colheita. Muitos ainda dizem que a máxima qualidade do café ocorre quando ele é cereja na planta. Aí eu pergunto, você já provou esse café? Como você afirma que a máxima qualidade está ali, sendo que ninguém nunca tirou essa cereja, torrou e bebeu esse café? Porque não é possível: para você provar esse café ele será, obrigatoriamente, processado, seco e armazenado, então, não há como aferir ou inferir que a máxima qualidade está ali, na cereja. Hoje, acredito que não está.
Essa constatação é outra quebra de paradigma, não?
Sim. Fiz este trabalho há quase 20 anos, durante meu pós-doutorado na Holanda [entre 2005 e 2006]. Peguei a cereja do café e congelei em nitrogênio líquido, o que fez com que ela virasse um coco. Daí quebrei o coco, tirei a semente (sem deixá-la contaminar), e fui repetindo esse processo em várias etapas da secagem, tanto em cafés naturais quanto em desmucilados. Fiz medições usando metabolômica [que identifica e quantifica conjuntos de metabólitos, o metaboloma, produzidos e/ou modificados por um organismo] – e deve ter sido um dos primeiros estudos desse tipo em café para avaliar qualidade – e consegui demonstrar que a composição química da semente do café muda durante a secagem em função do método de processamento e da temperatura utilizada.
Que tipo de transformações acontecem?
Se conseguíssemos provar o que está na semente – usando vácuo e secando-a muito rápido, sem temperatura, por exemplo –, acho que a maioria não iria gostar desse café. Por quê? Porque transformações importantíssimas acontecem durante o processamento e a secagem que definem a composição química final da semente que nós conhecemos, que são as sementes secas que torramos e bebemos. Então, tudo o que conhecemos sobre a qualidade do café passou por processamento e secagem. Nós não sabemos exatamente qual é a qualidade sensorial da cereja, pois nunca provamos esse café. Ninguém, que eu saiba, provou o café torrado a partir da semente com a composição química de quando o café era cereja, porque obrigatoriamente essa composição química mudou.
É por isso que o café natural tem um sensorial diferente do cereja descascado. Dependendo do processamento, a atividade enzimática do café muda, a atividade do embrião muda, a produção de enzimas que irão mobilizar as reservas do endosperma muda… São cafés bastante diferentes. E por quê? Por causa de diversos processos, tanto do ponto de vista microbiológico (atividade microbiana que ocorre de modo diferente nos dois métodos de processamento) quanto do ponto de vista da fisiologia da semente. Num café descascado, o embrião produz várias enzimas, que, por sua vez, mobilizam diversos compostos depositados, porque este embrião acha que vai germinar… Só isso já mudou completamente o perfil químico do café. Já em um café natural, a sementinha (o embriãozinho) não sabe que vai germinar, acha que vai continuar ali, então seu metabolismo é totalmente diferente.
Então é possível dizer que o método de processamento é predominante na qualidade do café?
Quando nós inferimos qualidade com base em pontuação de cafés, não. Mas se usamos como base a descrição dele, sim. No primeiro caso, inferimos qualidade dizendo que um café bebe 87, 88, 84 pontos. Isso independe do método de processamento, pois teremos cafés de uma mesma planta sendo produzidos como natural e descascado e pontuando, ambos, 86. Mas, do ponto de vista descritivo, eles são cafés diferentes. Assim, não podemos afirmar que um método produz café com pontuação maior ou menor do que outro. Eu afirmo que os métodos produzem cafés com descritores sensoriais diferentes, com atributos sensoriais diferentes (nível de acidez, tipo de acidez, tipo de corpo, tipo de sabor, tipo de aroma).
Isso significa, então, que não existe um método de processamento melhor do que outro, certo?
O processamento interfere na qualidade do café diferenciando seus sabores, certo? Sabores são atributos sensoriais, não necessariamente a pontuação final de um café. Existem, sim, métodos de processamento mais adequados ou com maior potencial para expressar qualidade em função do genótipo da planta e do ambiente de seu cultivo. Então, há, aqui, uma tripla interação.
Por exemplo, temos uma variedade vermelha e uma amarela. As duas têm genótipos diferentes, mas estão no mesmo solo, no mesmo clima e no mesmo ambiente. Em função do estímulo que esses cafés estão recebendo, eles terão uma expressão gênica diferente – a variedade amarela irá produzir compostos diferentes dos produzidos pela variedade vermelha. Um determinado método de processamento poderá potencializar mais a qualidade da variedade vermelha e outro método, expressar melhor a qualidade da amarela.
Esse conhecimento está só começando, não, professor? Por que existem centenas de variedades, e cada uma tem um genoma diferente, não é?
Exatamente. Por isso, costumo dizer aos produtores que não existe uma regra geral, mas alguns indicadores que, até o momento, são bem assertivos. O primeiro deles é separar variedades vermelhas e amarelas.
Como no Brasil a base genética dos cafés arábica é muito pequena – a grande maioria das variedades comerciais existentes derivam praticamente da variedade típica (ou seja, de uma mesma planta) –, o que tenho observado é que, em média, variedades vermelhas se diferenciam das amarelas. Assim, no Brasil, o ambiente é preponderante, porque nossa base genética é pequena. Tanto é assim que nós, brasileiros, falamos muito mais de altitude, de solos e de região do que de variedades. Mas, à medida que novos genótipos estão sendo introduzidos no Brasil, percebemos distinções muito grandes. Veja o caso da variedade geisha, que não faz parte dessa base genética das variedades de arábica brasileiras mas que, de repente, se destacou. O genótipo, realmente, tem prevalência sobre o ambiente, especialmente quando consideramos a variação genética mundial da espécie Coffea arabica.
Essa base genética estreita dos arábicas no Brasil é um dos fatores que explicam, então, a dificuldade de identificar, sensorialmente, qual é a variedade de uma bebida café?
É difícil identificar variedade em café. Dependendo do grau de treinamento do degustador ou do painel sensorial, algumas variedades conseguem ser identificadas, como geisha ou bourbon amarelo. Em função disso, fico pensando se vale a pena, em um rótulo de café, colocarmos o nome da variedade para o consumidor, que diferencia muito mais, do ponto de vista sensorial, processamentos e torras do que variedades.
Qual é a importância de identificar variedades em embalagens? Eu, por exemplo, costumo colocar na minha linha Reserva [o cientista tem uma cafeteria e torrefação em Lavras, a Borém Cafés Especiais] um descritivo bastante simples. Depois de eleger aqueles cafés com maior potencial para o consumidor final, identifico na embalagem a fazenda, a região e o método de processamento, pois tenho dúvidas se toda essa informação é "consumida" pelo consumidor.
Mas, ultimamente, estou tentando entender melhor o consumidor de cafés: o que é importante que ele saiba no momento de tomar a decisão de comprar um pacotinho de café? Afinal, pelo que ele está pagando? Primeiramente, pelo sensorial. Comecei a colocar a pontuação na embalagem da linha Reserva, cujos cafés bebem entre 85 e 90. Mas os consumidores escolhem mais pela descrição sensorial do que pela nota do café.
Por que decidiu abrir uma torrefação e cafeteria?
Muita gente me perguntou por que eu não lançava uma marca de cafés. Todos em casa gostam de café e de receber bem. Durante a pandemia, sugeri a uma das minhas filhas – a mais apaixonada pela bebida, e que desistira de seguir carreira em direito – abrirmos uma cafeteria. Fiz uma proposta para alguns produtores com quem eu trabalhava de vender o grão torrado pela internet – o que não consegui fazer até hoje. Mas o negócio seguiu: achamos um ponto excelente, que reformamos e, em 2021, inauguramos a Borém Cafés Especiais. Foi difícil, mas, escutando palestras sobre empreendedorismo na SIC 2023, vi que havíamos iniciado com um bom diferencial, como controle contábil, precificação, contratação de RH, posicionamento de marca etc.
É você quem torra os cafés, quem escolhe as variedades?
Estou torrando tudo, mas por pouco tempo. Mas como estou gostando, não tenho pressa. Não sou mais uma marca de café. Faço uma torra consistente, que conheço. Vou aprender muito ainda, mas também já aprendi demais. Tive que estudar esse mundo, mas, quando provo outros cafés, penso que já torro bem pra caramba.