Impulsionado pela euforia derivada das altas do bitcoin, o debate sobre o blockchain (tecnologia de registro distribuído que visa a descentralização como medida de segurança. São bases de registros e dados distribuídos e compartilhados que têm a função de criar um índice global para todas as transações que ocorrem em um determinado mercado) vai muito além das chamadas criptomoedas. Relatório recente publicado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês) discute potenciais aplicações da tecnologia no setor agrícola, além de descrever uma série de exemplos de empresas e iniciativas que já aplicam o blockchain na resolução de problemas enfrentados por produtores rurais. As vantagens potenciais são consideráveis, assim como os desafios.
Comecemos pelas boas notícias. Em primeiro lugar, o blockchain poderia ser utilizado para o desenho dos chamados “contratos inteligentes”, que viabilizariam o oferecimento de seguros a produtores familiares. Graças à conexão com fontes de dados primários sobre eventos climáticos, seria possível imaginar o estabelecimento de contratos que efetuassem um pagamento automático aos produtores rurais em caso de um desastre. Os “contratos inteligentes” trariam agilidade ao mercado de seguros a um custo relativamente baixo, permitindo – em teoria – às empresas o oferecimento de soluções a pequenos produtores rurais.
Querem outro exemplo? Em diversos países em desenvolvimento, o blockchain inspira projetos para o desenvolvimento de sistemas mais seguros de registro da propriedade de terras. Em seus aspectos mais óbvios, a criação de um sistema descentralizado reduziria consideravelmente a possibilidade de fraudes nos documentos. Ademais, levaria à existência de uma realidade em que a situação das transações de terra seria atualizada em tempo real. Outra vantagem potencial – muitas vezes esquecida – diz respeito à capacidade de recuperação dos dados em caso de destruição dos arquivos originais. A existência de um sistema baseado na tecnologia blockchain elimina a preocupação com a recuperação da memória institucional de um país após um conflito armado ou desastre natural. Afinal, os registros estarão seguros da destruição causada por humanos ou pela natureza.
No que se refere ao funcionamento das cadeias de suprimento agroindustriais, o blockchain permite a adoção de políticas mais ambiciosas e transparentes de rastreabilidade. Em outras palavras, as empresas não apenas poderiam materializar as promessas de acompanhamento estrito das práticas adotadas ao longo de toda a cadeia – algo muito custoso com as tecnologias do fim do século XX – como também teriam menor espaço para relativizá-las – uma prática comum, tendo em vista os altos custos de monitoramento. É crescente o interesse pelo desenvolvimento de sistemas que permitam ao consumidor obter toda a informação sobre um determinado produto ainda no local em que decide se o comprará.
Passemos agora à discussão de alguns dos desafios derivados da consolidação dessas novidades. Ninguém questionaria a afirmação “mais informação é melhor” – ao menos a princípio. Entretanto, o processamento dessas informações envolve um custo que não se limita ao seu fluxo ao longo de uma cadeia de suprimento. Embora o blockchain reduza os custos de reunir e transferir um grande volume de dados de um ponto ao outro, a mente humana continua com a mesma capacidade de processá-los. Serão capazes os consumidores do futuro de lidar com o número crescente de informações disponíveis? Não será uma política de “rastreabilidade absoluta” sinônimo de esvaziamento da própria ideia de rastreabilidade?
Também é necessário lembrar que, por trás das ilusões de erosão da autoridade do governo central que permeiam muitas das análises inspiradas no avanço tecnológico contínuo das últimas décadas, um complexo processo de evolução histórica existe. Nele, Estados emergem como uma importante garantia para a realização de transações. É bem verdade, tal sistema não funciona de forma eficiente em todos os lugares do mundo. Porém, o simples fato de sermos capazes de explicar o desenvolvimento econômico relativo de um país por meio de uma análise do seu nível de eficiência institucional demonstra que o papel do Estado nessa dinâmica não é trivial. De fato, a materialização de um “contrato inteligente” depende da existência de um amplo arcabouço de instituições e organizações de apoio. São necessários tanto o acesso aos dados relevantes para o funcionamento adequado do mercado – quem mensura as variações climáticas? – quanto o acompanhamento de burocracias auxiliares capazes de resolver eventuais conflitos.
Por sinal, engana-se quem supõe que a consolidação do blockchain necessariamente eliminaria o espaço para as discordâncias entre as partes. O que certamente ocorrerá é uma mudança nos temas que motivarão os conflitos. São muitas as decisões envolvidas no desenho de uma solução amparada no blockchain. Em particular, faz-se necessário escolher o algoritmo a ser usado. A emergência de agentes com legitimidade suficiente para oferecer soluções a eventuais disputas entre os usuários de plataformas descentralizadas será uma consequência natural do amadurecimento da tecnologia.
Finalmente, é importante salientar que a consolidação do blockchain acarreta um aumento da responsabilidade pessoal dos seus usuários. Conforme o próprio relatório da FAO salienta, é muito difícil corrigir uma informação errada inserida em um sistema com essas características. Preencher um formulário com falta de atenção passará a acarretar consequências inimagináveis até bem pouco tempo.
Feita uma projeção dos vícios e virtudes do blockchain, seria um erro não salientar as limitações de tal esforço. Vantagens potenciais ou desafios se referem a cenários que certamente envolverão mudanças simultâneas em outras variáveis. Dessa maneira, exercícios de “futurismo” estão necessariamente fadados a perder vigor com o tempo. Otimistas ou pessimistas, os analistas das consequências do uso do blockchain terão que se acostumar a uma realidade repleta de efeitos inesperados e a emergência de novos usos para a tecnologia. Por isso, conhecer os possíveis usos ou problemas da sua utilização constitui apenas um primeiro passo analítico. Atualizações constantes deverão ser feitas à medida que os efeitos do uso do blockchain transformarem outros aspectos da vida em sociedade.