O universo dos cafés especiais não engloba apenas a qualidade do grão, mas também a diversidade de técnicas e maneiras de preparar uma boa bebida. São vários os resultados obtidos a partir do mesmo café torrado. Mas um outro olhar sobre a complexa equação para alcançar a xícara desejada desperta a pergunta: quantas vezes já se pensou a respeito da água utilizada nesse processo? Assim como a escolha do café, a decisão sobre a água a ser usada no preparo interfere no sabor final da bebida.
Em uma xícara de café coado, a água representa 98% da bebida. Essa constatação, especialmente para quem trabalha com grãos especiais, é suficiente para despertar uma reflexão quanto ao tipo de água utilizada no preparo do café. “Ela é a substância predominante”, diz o barista Gabriel Guimarães, da cafeteria Unique Cafés, em São Lourenço (MG). “Sendo assim, sua qualidade é indispensável para um bom resultado. Podemos até dizer que uma xícara de café é café moído dissolvido em água”, arrisca ele.
Muitas vezes a água é vista como um ingrediente simples, puro. Mas, além do hidrogênio e do oxigênio que compõem sua fórmula, esse líquido vital pode conter outras substâncias que interferem diretamente no sabor do café. “A água apropriada para o consumo é chamada água mineral, designação que significa, justamente, que ela também carrega sais minerais em sua composição”, explica Vittor Alves, mestre em Engenharia Química pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). “Entre os sais que a compõem estão bicarbonatos, sulfatos, fluoretos, cloretos e carbonatos, entre outros”, lista ele. Estes sais, por sua vez, podem ser de quatro diferentes tipos de minerais: cálcio, magnésio, potássio e sódio. Vale mencionar que as águas minerais brasileiras, se comparadas às águas de países europeus, têm um conteúdo bem menor de sólidos dissolvidos (STD). Além disso, o pH das águas nacionais é, em geral, mais ácido que o das as águas europeias.
Na hora do preparo
Os sais minerais influenciam a extração de café e podem interagir com as substâncias obtidas no processo. A água destilada, que contém baixíssimas quantidades de minerais, reage de forma diferente com o café se comparada à água que os contêm. Isso significa que o sabor de uma xícara depende, até certo ponto, da mineralização da água utilizada no preparo da bebida. Dois fatores importantes para a qualidade da água são a alcalinidade, que indica pH maior que o neutro, e a dureza, relacionada à presença de cálcio e magnésio. A alcalinidade é a medida total das substâncias presentes na água e capazes de neutralizar ácidos. Entretanto, no café, os ácidos têm um papel importante na composição do sabor final da bebida. “De forma geral, o preparo do café envolve a extração de substâncias majoritariamente ácidas. Usar águas cujo pH é muito baixo pode resultar em uma bebida com acidez descontrolada”, explica Alves.
Já o cálcio e o magnésio podem afetar a extração de componentes como a cafeína e os compostos aromáticos. “Alguns minerais, como o magnésio, têm um potencial efeito de extração, ou seja, intensificam a extração de ácidos orgânicos que afetam as notas de sabor”, detalha o especialista. Portanto, aconselha Alves, é necessário prestar atenção às características da água utilizada.
De olho nos rótulos
As águas minerais comercializadas em supermercados e em outros pontos de venda devem informar a fonte de origem e sua composição química. Em termos de consumo e utilização para fins alimentares, algumas dessas informações são mais comuns, como os teores de cálcio e de magnésio.
Nos rótulos das águas também é possível encontrar o pH (a 25 °C). “Para o consumo humano, geralmente recomendam-se águas minerais com pH levemente alcalino, em torno de 8, que é, justamente, o mais próximo do pH sanguíneo. O consumidor mais atento irá verificar, também, se a água provém de fonte natural ou teve a adição de sais minerais”, ensina o engenheiro químico.
Guimarães também destaca que as águas comercializadas não trazem informações como alcalinidade e dureza. “Fica aqui uma dica ‘matemática’ para calcular e observar se a água está dentro dos padrões”, diz o barista, referindo-se ao padrão estabelecido pela Specialty Coffee Association (SCA).
Para chegar à alcalinidade, Guimarães ensina a multiplicar a quantidade de bicarbonato por 0,8, e, para descobrir a dureza da água, deve-se multiplicar o teor de cálcio por 2,5 e o de magnésio por 4,2, somando então os dois resultados. Nas duas fórmulas, o valor obtido, em miligramas por litro, deve estar dentro da faixa aceitável definida pela SCA (confira a tabela no final da reportagem).
Água filtrada
A grande diferença entre as águas engarrafadas e aquela que chega às torneiras das casas é a sua origem. Na maior parte das vezes, a água da torneira é fornecida pelo sistema de tratamento urbano. Alves explica que nem sempre esse tratamento é eficaz contra toda a carga bacteriológica que vem com ela. “O tratamento pode trazer um excedente de cloro, agregando odor e gostos indesejáveis ao café. Além disso, o próprio transporte da água pelas tubulações pode incorporar a ela substâncias metálicas, como o ferro, e sedimentos”, pondera.
Assim, tanto filtros de barro quanto purificadores de água garantem que este excedente de substâncias indesejadas seja removido pela filtragem. “Quando feita adequadamente, a filtragem não só remove eventuais cargas biológicas da água como altera sua carga mineralógica, afetando propriedades físico-químicas como pH, condutividade, dureza e alcalinidade”, aponta Alves. Tudo isso, direta ou indiretamente, interfere na qualidade e no sabor do café preparado em casa.
Guimarães, porém, acredita no uso da água filtrada em casa para o preparo do café. “É um bom começo”, pontua. Ele indica, também, práticas que podem ajudar quem faz, diariamente, sua própria xícara de café:
- “Uma dica é observar, na conta de água, qual é a promessa de entrega do fornecedor, e buscar um especialista para indicar um filtro que possa ser instalado na rede de fornecimento, para melhorar a qualidade da água e deixá-la mais utilizável para o café”.
- “Parece contraditório, mas a água da torneira, fervida por, em média, 20 minutos, pode reduzir o cloro e talvez funcione como uma solução momentânea. Porém, vale lembrar que não teremos informações químicas sobre ela”.
Texto originalmente publicado na edição #83 (março, abril e maio de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.