Por Paula Thaís S. Soares1, Yasmin J. D. Sales2; Fernando J. B. Correa2; Mariana T. C. Machado2; Mônica M. Pagani2; Erick A. Esmerino1,2
Em levantamento realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), antes da disseminação da COVID-19, foi estimada para o ano de 2020, uma safra recorde de café no Brasil, com um aumento entre 15,9 % e 29,8 %, em relação ao ano anterior, podendo chegar ao volume de 62 milhões de sacas colhidas.
A aquisição do café como matéria-prima para a indústria, assim como a subsequente geração de resíduos produzidos ao longo do seu beneficiamento, seguem essa mesma tendência de crescimento. A preocupação com os problemas ambientais provocados pelos resíduos tem despertado o interesse no upcycling, expressão que denomina a técnica de reaproveitamento. Diversos estudos vêm ampliando o conhecimento a respeito de possíveis utilizações desse resíduo, gerando subprodutos de alto valor agregado, através da recuperação dos compostos bioativos presentes nos mesmos, tornando-os cada vez mais interessantes para as indústrias de alimentos, fármacos e cosméticos.
Após a colheita, o café passa pelas etapas de preparo, secagem e armazenagem. A secagem, fundamental para um produto de qualidade, pode ser realizada por via seca ou por via úmida. Na via seca, a mais comum no país, nenhuma camada é removida e as cerejas de café são dispostas ao sol para secar até que a umidade seja reduzida para aproximadamente 40%. Em seguida, são transferidas para os secadores até que alcancem 12% de umidade. A secagem por via úmida consiste na passagem, sob pressão, dos grãos por despolpadores, com auxílio da água na separação da casca, resultando em cafés descascados e despolpados que serão, na sequência, levados ao terreiro para a secagem propriamente dita.
Independente da via a ser utilizada, o fruto de café colhido, por possuir alto teor de água e açúcar, deve ser rapidamente submetido à secagem para evitar uma fermentação acelerada. Após essa etapa, aproximadamente 44% do peso da matéria seca restante, permanecem de forma residual como folhas, galhos, frutos verdes, casca, pergaminho, polpa, mucilagem e silverskin.
Dos resíduos gerados, as cascas podem ser reutilizadas como combustível, carvão, adubo orgânico e ração para animais O pergaminho, além dessas mesmas aplicações, pode servir como composto orgânico. A polpa pode ser aproveitada como adubo, condicionador do solo e ração animal, enquanto a mucilagem servirá como fonte de pectina ou meio de cultura. Vale ressaltar que a presença de compostos fitotóxicos e antinutricionais na composição dos resíduos de café pode limitar o uso direto nas aplicações no solo e como ração animal. No entanto, esses mesmos resíduos oferecem inúmeras vantagens, pois são ricos em antioxidantes, cafeína, ácidos clorogênicos, diterpenos, além de polissacarídeos, proteínas e minerais. Eles também apresentam componentes de interesse tecnológico e podem ser empregados como corantes naturais e aromatizantes. Além disso, o crescente número de patentes que reivindicam soluções para sua extração e uso em diversos alimentos, medicamentos e aplicações agrícolas revelam seu potencial futuro promissor para esses fins.
A maioria dos suplementos alimentares a base de café é feita com o grão verde, obtido a partir das sementes do café não torradas, evitando a perda de alguns componentes bioativos importantes, como compostos fenólicos, representados principalmente pelos ácidos clorogênicos. Recentemente, uma grande atenção tem sido dedicada aos subprodutos do café, como o silverskin, que fornece de forma mais econômica, os mesmos compostos bioativos encontrados nos extratos de café verde. Outro exemplo se refere à cafeína, um alcaloide com alta atividade antioxidante que pode ser extraída tanto a partir da cereja do café, como dos diferentes subprodutos obtidos do seu processamento.
Um volume significativo de borra de café que também é considerado como um resíduo da produção é liberado na fabricação de café solúvel. Uma tonelada de café cru gera em torno de 480 kg de borra, o que a torna um resíduo equivalente a aproximadamente 50 % do café torrado na indústria do café solúvel. De acordo com estudos realizados por Martinez-Saez (2017), o silverskin e a borra de café são fontes de compostos antioxidantes, fibras insolúveis, aminoácidos essenciais e açúcares com baixo índice glicêmico. Como são resistentes ao processamento térmico convencionalmente empregado nos alimentos, seguros no processo de digestão e possuem alto potencial de redução do risco de doenças crônicas não transmissíveis como obesidade e diabetes, o emprego de resíduos de café como ingredientes em produtos de panificação, bebidas e outros alimentos sustentáveis ??de alta qualidade sensorial se mostra um mercado promissor.
O setor de cosméticos é outro exemplo de segmento que tem apostado na utilização dos resíduos do setor cafeeiro como o silverskin, a borra, a casca e os grãos com defeito, para o lançamento de linhas elaboradas com ingredientes naturais para cuidados com a pele, com base nas propriedades dos seus compostos bioativos. Marcas conhecidas como Frank Body®, Origins®, 100% Pure®, Caudalie® e The Ordinary® já produzem e comercializam esse tipo de produto.
No meio ambiente, os resíduos de café podem ser usados para a produção de biochar, um produto rico em carbono, obtido através da decomposição térmica de matéria orgânica, que melhora a fertilidade do solo, reduz a emissão de gases de efeito estufa e retém água e nutrientes para as plantas. Além disso, há a possibilidade da utilização das cascas e da borra de café para aplicações energéticas como a produção de biocombustíveis, biodiesel, bioetano, através de processos termoquímicos. Como exemplo, startups provaram que os grãos de café e seus subprodutos podem se tornar recursos valiosos. Uma das pioneiras no uso de resíduos de café como matéria-prima sustentável, a Biobean® do Reino Unido, produz biocombustíveis sustentáveis a partir de grãos de café desde 2013. Paralelamente aos testes de biodiesel, a empresa começou a produzir "Coffee Logs", uma alternativa mais sustentável ao uso de toras de madeira em queimadores e fogões com múltiplos combustíveis. A empresa segue em expansão e está produzindo uma variedade de biocombustíveis sólidos, aromatizantes e fragrâncias naturais para cosméticos, alimentos e bebidas. Recentemente a startup alemã Kaffeeform® desenvolveu xícaras, pires e copos de café a partir da borra de café descartada por cafeterias e colaboradores selecionados, recebendo em 2018 o Red Dot Product Design Award, um dos principais prêmios de design do mundo. Colaborações intersetoriais entre as empresas McDonald’s e Ford Motor Company® que planejam criar novas peças de veículos usando borra de café descartada, também estão em alta.
No Brasil, o upcycling no setor cafeeiro ainda é insipiente, mas se mostra bastante promissor, especialmente por ser tratar do maior mercado produtor e consumidor deste produto. Novos caminhos e oportunidades sustentáveis para toda a cadeia agroindustrial do café têm sido desenvolvidos, através do aperfeiçoamento da produção, redução na geração de resíduos e agregação de valor aos seus subprodutos que apresentam potencial para serem utilizados como matérias-primas secundárias nas indústrias de alimentos, fármacos e cosméticos.
___
1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Departamento de Alimentos, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
2 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Tecnologia, Departamento de Tecnologia de Alimentos, Seropédica, Rio de Janeiro