Por Maurício Antônio Lopes*
Estima-se que a atual pandemia poderá custar até US$ 16 trilhões globalmente, cerca de 500 vezes mais do que seria necessário para se prevenir crise semelhante no futuro. Com a migração humana, o crescimento populacional, a rápida urbanização, o intenso trânsito de viajantes ao redor do globo e as mudanças climáticas acelerando a disseminação de doenças letais, nunca foi tão fácil para surtos se transformarem em epidemias e daí se converterem em pandemias. Antecipar e gerir este risco deve ser um esforço mundial que mobilize governos, empresas, academia e organizações não governamentais, todos reconhecendo que conter tal perigo é uma prioridade de interesse público global.
À missão de vencer a pandemia de Covid-19 e criar barreiras ao surgimento de catástrofes semelhantes no futuro, somam-se outros desafios. A ONU acaba de publicar relatório sobre o financiamento para o desenvolvimento sustentável em âmbito global - denominado Financing for Sustainable Development Report 2021, documento que nos mostra um mundo fraturado e assimétrico, com crescente distanciamento entre ricos e pobres e enorme carência de recursos necessários para combater a pandemia e outros riscos sistêmicos, como as mudanças climáticas, o que compromete a tão desejada trajetória da humanidade na direção de um futuro sustentável.
Ainda assim, o relatório indica que a resposta à crise pode criar uma oportunidade sem precedentes para construção de um mundo melhor, caso governos se disponham a investir em capital humano, sistemas de proteção social e em infraestrutura e tecnologia resilientes e sustentáveis. E caso a comunidade internacional apoie os países mais pobres em tais esforços. A crise também abre espaço para se reformar a arquitetura política e institucional vigente, redesenhando planejamento e tributação, viabilizando acesso amplo à digitalização, fortalecendo o comércio multilateral e a rede de segurança financeira global, em linha com a Agenda 2030 da ONU e necessidades dos países em desenvolvimento, para os quais a crise tem implicações mais severas e de mais longo prazo.
A grande questão é, no entanto, de onde surgirão as lideranças e o financiamento compatíveis com as soluções para um futuro sustentável, prescritas neste e em muitos outros relatórios que analisam saídas possíveis para a crise. Quase todas as prescrições apontam para a necessidade de governos e líderes hábeis e aptos a alavancar a capacidade dos estados nacionais e das organizações multilaterais no tratamento dos riscos sistêmicos que estão a ameaçar a humanidade. Mas a dura realidade é que o mundo carece de instituições fortalecidas e lideranças e, talvez por isso, viva à mercê de um sistema econômico que multiplica privilégios e desigualdade. E, pior, que frequentemente privilegia a financeirização e o “rentismo” – a tática daqueles que ganham dinheiro sem realizar nenhum trabalho, arriscando pouco ou nada de seus ativos.
É, por exemplo, surpreendente ver crescer o número de manchetes de jornais informando que fortunas estão se multiplicando ao redor do globo em plena pandemia. Em março de 2021, o Institute for Policy Studies, dos Estados Unidos, informou que os 2.365 bilionários do mundo desfrutaram de um acréscimo de US$ 4 trilhões em sua riqueza desde o início da pandemia, aumentando suas fortunas em absurdos 54%. A crise evidenciou também uma enormidade de grandes empresas que pagam pouco ou nenhum imposto, o que recentemente levou o presidente americano Joe Biden a afirmar publicamente: “eu não posso acreditar que preciso dizer isso, mas empresas gigantes não deveriam pagar menos impostos que um professor ou um bombeiro”.
Importante dizer que os bilionários e as grandes empresas não são o problema – o problema está na arquitetura dos sistemas de poder, influenciáveis pela financeirização, pelo rentismo e pela sofisticada engrenagem que modula os sistemas decisórios em favor da concentração desproporcional de riqueza. E o problema está também em governos que, ao invés de reconhecerem e tratarem tais distorções, se deixam influenciar pelo negacionismo sobre a importância do Estado, apostando na liquidação do patrimônio público como forma de eliminar “custos” e fazer caixa para lidar com os impactos da crise. Saída que pode se converter em pesadelo, caso não haja discernimento capaz de preservar estruturas estatais estratégicas, que protejam e fortaleçam a capacidade empreendedora e realizadora do Estado e os interesses da sociedade.
Tomemos como exemplo o caso do Brasil, em que empresas e organizações estatais como Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, Fiocruz, Embrapa, IBGE, INPE, dentre muitas outras, vem há anos sendo questionadas e fragilizadas, apesar de comporem uma linha de defesa da qual o Estado Brasileiro não pode prescindir. Afinal, o fortalecimento da capacidade empreendedora e realizadora de qualquer país, na saída desta grave crise, jamais será alcançada senão pela complementaridade entre sua capacidade estatal e a evolução da economia de mercado, se a intenção é fazê-lo atendendo ao interesse público e não apenas aos apetites vorazes e voláteis dos mercados. Por isso é chegado o momento de os líderes olharem à sua volta e se darem conta do custo de se negligenciar o investimento público, buscando restaurar enquanto é tempo a governança voltada com prioridade aos interesses maiores da sociedade.
*Maurício Antônio Lopes é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).