Por Camilla Nieman
Patrocínio, Minas Gerais: município brasileiro conhecido principalmente por sua extensa produção de café de qualidade e caracterizado por muitos córregos e rios, ricos em minerais. O bioma local é o de uma savana, com uma flora e fauna impressionantes. Essa realidade idílica, no entanto, pode desaparecer em um futuro próximo: um grave caso de diminuição da água está ameaçando esta região, causando uma rápida deterioração de suas condições de qualidade.
Foto: Camilla Nieman
É necessária uma ação coletiva para preservar a água e o ecossistema da região, e a Nespresso foi uma das primeiras a perceber isso. Considerando a importância da região para a multinacional, isso não é surpreendente: o Brasil é o maior fornecedor de grãos de café de qualidade para a Nespresso e, no Brasil, Minas Gerais (e o município de Patrocínio, em particular) é o principal fornecedor. Grande parte do conteúdo das célebres cápsulas coloridas de café, disponíveis mundialmente, derivam desses grãos de café.
Em 2013, um seleto grupo de organizações como Nespresso, IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza), Federação dos Cafeicultores do Cerrado e Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), Ipê, Cooxupé, CerVivo, Unicerp, UTZ e Daepa decidiram unir forças e, em 2015, lançaram oficialmente Consórcio Cerrado das Águas (Consórcio Águas do Cerrado). Como a situação hídrica precária não afeta apenas os futuros apreciadores de café em todo o mundo, mas principalmente a flora, a fauna e os habitantes locais da região, essa iniciativa de sustentabilidade tem uma abordagem diferente em comparação com outras de seu tipo: inclui representantes de diversos setores (sociedade civil, setor público e setor privado) e parceiros estratégicos locais cuja soma de capacidades, talentos, recursos e força politica visa melhorar a qualidade e a quantidade de água - e dos demais serviços ecossistêmicos ofertados na região. Á frente da Secretaria executiva do Consórcio está a Federação dos Cafeicultores do Cerrado, entidade que representa, controle e promove a Denominação de Origem e o Plano de Desenvolvimento e Sustentabilidade da Cafeicultura do Cerrado Mineiro, que tem sede em Patrocínio, cidade onde se encontra o projeto piloto do Consórcio.
Outra dessas partes interessadas é a ONG ambiental brasileira Imaflora, responsável por um projeto específico, parte das atividades do Consórcio. Mapear a condição natural atual da região como ferramenta para ajudar os produtores locais a adotar formas de produção (mais) sustentáveis ??e a cuidar melhor das reservas naturais locais é o objetivo deste projeto que é apoiado pelo CEPF (The Critical Ecosystem Partnership Fund).
Vários atores, diferentes prioridades, perspectiva em comum
Como a questão da água afeta vários habitantes da região (na forma de seres humanos, animais e plantas), o Consórcio também se concentra em diferentes interesses. A ideia por trás do Consórcio é conectar o conhecimento e a energia das instituições que representam esses atores para enfrentar o desafio em conjunto. Todas as partes interessadas têm suas próprias necessidades, mas também suas próprias obrigações para resolver o problema.
A colaboração não beneficia apenas os produtores locais de diversos produtos (o café não é o único, pelo qual a região é conhecida, entre outros, pelo excelente queijo), mas também pelos cidadãos de Patrocínio. E não pouco: todo o município depende diretamente da água retirada da bacia em que o Consórcio opera, a “Bacia do Córrego Feio”. Canalizar a água de outro município próximo não é uma opção viável, pois seria muito difícil e caro.
Foto: Camilla Nieman
Outro fator surpreendente é o chamado “pato-mergulhão” (Mergus octosetaceus), listado na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN. No momento, Patrocínio é uma das poucas áreas na América do Sul - e no mundo em geral - onde esse pato ainda existe, enquanto já está extinto em países como a Argentina. Parte da escolha de direcionar o foco do Consórcio especificamente para essa bacia deve-se ao fato de que os poucos exemplares existentes de patos-mergulhão brasileiros vive na área. Desde o início do projeto, a Nespresso e a IUCN têm trabalhado para tornar o Consórcio uma plataforma multissetorial, envolvendo instituições de áreas como política, academia e instituições ambientais. O objetivo era criar uma abordagem co-criada por todos os atores, um plano colaborativo. “A IUCN, como mediadora neutra, teve a tarefa de extrair a visão comum dos diversos stakeholders, que têm expectativas e interesses diferentes”, explica Guilherme Amado, gerente de café verde da Nespresso no Brasil. Além disso, a IUCN tem a responsabilidade de coordenar todos os membros e seus vários projetos dentro do Consórcio.
Mesmo que a perspectiva entre os membros varie bastante, há uma forte conexão com a localidade dentro do Consórcio. As instituições locais formam uma grande parte dos membros envolvidos, beneficiando o projeto com o conhecimento local e, com isso, reforçando o caráter inclusivo do Consórcio.
Para Juliano Tarabal, Superintendente da Federação dos Cafeicultores do Cerrado e responsável pela secretaria executiva do Consórcio, “ a cafeicultura do Cerrado Mineiro recebeu muito bem esta iniciativa multi-stakeholder, pois temos um arranjo organizacional bem coordenado que envolve cooperativas e associações de produtores e na produção somos a Região cafeeira no Brasil com maior área certificada em boas práticas agrícolas, além de sermos a primeira e única Denominação de Origem para café no Brasil, o que denota o elevado nível de preocupação dos produtores da Região com a sustentabilidade e a identidade regional" – afirmou ele.
Principais pilares
Como explica Eduardo Trevisan Gonçalves, gerente sênior de projetos do Imaflora, a essência do Consórcio é criar um mecanismo para melhorar as condições para os produtores manterem os ecossistemas naturais que são fundamentais para a produção e a qualidade da água. Três pilares principais da estratégia central definida são:
- O primeiro pilar, que é o principal produto, consiste na criação de um sistema de valorização do produtor a partir dos Serviços Ecossistêmicos ofertados. Estes serviços são as atividades realizadas em campo que podem beneficiar a conservação da água do Córrego Feio, bem como a biodiversidade local.
- O segundo pilar consiste em disseminar conhecimentos para produtores e técnicos locais sobre as chamadas “boas práticas” que podem contribuir para os serviços ecossistêmicos, entre elas a restauração do cerrado, práticas de produção climaticamente inteligentes e de conservação dos solos, águas e outros aspectos ambientais. Com o apoio do CEPF, dois manuais serão publicados em breve: um sobre restauração de terras degradadas e outro sobre serviços ecossistêmicos.
- O terceiro pilar consiste em integrar as partes interessadas realizando reuniões frequentes e mantendo o fluxo de informações e recursos bem gerido - em outras palavras, mantendo o projeto coeso e funcionando.
Espírito pioneiro
O Consórcio Cerrado das Águas é uma iniciativa inovadora em que o conceito de pioneirismo desempenha um papel central. Todos os envolvidos são pioneiros, desde a Federação dos Cafeicultores do Cerrado, o primeiro grupo a conquistar a Denominação de Origem da Região do Cerrado Mineiro aos outros membros que se emprenharam para a criação da inciativa.
Amado destaca, de maneira interessante, que: “o espírito pioneiro é característico da região devido à história do Cerrado, que viu um fluxo de novos imigrantes a partir de 1975, principalmente italianos e japoneses, que na época eram pioneiros na produção de café.
Mapeamento de produtores da Bacia
Visando elaborar uma estratégia para a realização das atividades de conservação da Bacia do Córrego Feio foi necessária à criação um mapa, a fim de analisar quais partes da bacia estão mais vulneráveis em termos de áreas degradadas e que requerem mais atenção (áreas onde o reflorestamento é necessário, por exemplo). Este mapa foi complementado por entrevistas com os donos e moradores dos imóveis localizados na bacia. Nesse sentido, a equipe de georreferenciamento do Imaflora desenvolveu o mapa e a CerVivo, ONG de Patrocino liderada pela bióloga Fabiane Sebaio Almeida, está entrevistando e analisando as informações coletadas em campo.
Além de coletar essas informações, a CerVivo, como membro do Consórcio, entra em contato com os produtores locais na bacia para descobrir quem está disposto a participar do projeto. As informações serão utilizadas para ajudar os produtores e ofertar métodos de produção mais sustentáveis, apoiando a conservação da água e serviços ecossistêmicos na área.
No decorrer das entrevistas é constantemente sublinhado aos produtores quais benefícios potenciais eles podem obter com a participação no projeto. Segundo Guilherme Amado: “A ideia é torná-los 'produtores de água' também”, o que significa que os produtores se tornarão conscientes de seu papel na manutenção do ecossistema local, incluindo a presença de água.
O projeto não é simples. Nem todos os produtores estão dispostos a colaborar. No entanto, esse é frequentemente o caso com a introdução de uma inovação, como o Imaflora sabe bem. Não é de um dia para o outro que tais ideias serão aceitas ou mesmo aplicadas. Talvez a construção de uma relação de confiança com os participantes (neste caso, produtores locais (de café) seja a fase mais importante do projeto. Isso é necessário para atingir o objetivo, que é a implementação da estratégia de Valorização dos Produtores que conservam os ecossistemas.
No entanto, a possibilidade de sucesso é alta de acordo com muitos stakeholders. A maioria é positiva em relação ao Consórcio, especialmente devido ao grande impacto que pode ter, graças ao envolvimento direto na iniciativa de muitos setores ativos nessa área.
Consciência da Água
Uma coisa é clara: todo mundo precisa mudar sua ideia e atitude em relação à água: “As pessoas precisam perceber que a água não é infinita”, como diz a jovem professora Jessica Mara Pereira de Souza, da CerVivo. Ela tem certeza sobre o sucesso do Consórcio Cerrado das Águas, pois atinge todos os moradores de Patrocínio, diretamente afetados pelo sucesso do projeto.
Foto: Camilla Nieman
A água é preciosa. A água conecta a natureza e as pessoas, em todo o mundo e localmente ao mesmo tempo. Valorizar a água e administrá-la corretamente é, portanto, crucial. Nem todos estão cientes disso, e é por isso que é necessária mais consciência sobre a importância do gerenciamento da água. É exatamente isso que o Consórcio pode fornecer através de vários caminhos. O seu próprio slogan já contribui para essa consciência: "A água de hoje é o fruto da paisagem que construímos”.
Perspectivas Positivas
Essa iniciativa pode ser um exemplo importante para projetos de sustentabilidade nos quais vários participantes cooperam diretamente e se beneficiam. Deveria enviar uma mensagem positiva de que o trabalho está sendo feito por pessoas excelentes e capazes, e deve inspirar ainda mais a seguir o exemplo.
Nesse meio tempo, será interessante ver como o Consórcio se desenvolve no futuro próximo. Amado espera um grande progresso, e não apenas quando se trata do próprio Consórcio. “Eu trabalho com uma área no Brasil que realmente funciona!”, Ele aponta entusiasticamente, referindo-se à agricultura e aos desenvolvimentos que acontecem nesse campo, com múltiplos produtores (grandes e pequenos) dispostos e aptos a aplicarem essas inovações na prática.
Vejamos o que esta iniciativa nos ensina, com sua rica abordagem e mensagem importante, que resumidamente é: compartilhe o conhecimento, mantenha a água e apoie a vida local.
**Camilla Nieman é uma historiadora holandesa e jornalista independente. Nos meses de abril e maio de 2018, ela realizou uma pesquisa para o Imaflora sobre seu impacto em várias regiões brasileiras.