A recente polêmica sobre a tal “vacina da China” nos revela a superficialidade do debate público no Brasil. Ademais, nos oferece material abundante para a reflexão. Comecemos pelo óbvio. Definições como “vacina da China” ou “vacina de Oxford” podem até facilitar a redação de manchetes ou tweets, mas não deveriam influenciar o processo de tomada de decisão. Abundam os protocolos para a verificação da efetividade de uma vacina, bastando aos governos seguir os padrões internacionais para garantir o uso de uma alternativa segura para a população.
De qualquer maneira, controvérsias como a atual nos ajudam a refletir sobre o complexo funcionamento das cadeias globais de valor e o papel de empresas e governos em sua organização e regulamentação. Por trás de termos como “vacina de Oxford”, o que encontramos é um complexo emaranhado de relacionamentos entre empresas baseadas em diversos países do mundo. De fato, insumos fundamentais para a produção da tal “vacina de Oxford” provavelmente virão da China – que, por sinal, ocupa um papel central nas cadeias de suprimento da indústria farmacêutica juntamente com a Índia. Lógica semelhante vale para boa parte dos produtos que consumimos em nossas rotinas. Por exemplo, o celular ou o computador que permitem a leitura desse artigo muito provavelmente contam com componentes made in China.
Mais importante do que focar em atalhos é compreender como o valor derivado da produção de um bem ou serviço é distribuído ao longo da cadeia. Para ficar no exemplo do celular, sabemos que fábricas chinesas abocanham uma porção relativamente pequena do valor total derivado da comercialização dos aparelhos. Empresas baseadas em países como Alemanha, Coreia do Sul e Estados Unidos, especializadas em aspectos como o design e o marketing do produto, ficam com parcela bem maior. Diga-se de passagem, boa parte do incômodo com a globalização no mundo desenvolvido resulta justamente dessa divisão do trabalho. Enquanto empregos industriais ligados a elos da cadeia com menor capacidade de agregação de valor foram “exportados” para países em desenvolvimento, empregos ligados a setores criativos ou à administração de aspectos estratégicos do negócio seguem concentrados no chamado Primeiro Mundo.
Entender a lógica das cadeias internacionais de valor nos ajuda a identificar nosso papel nessa dinâmica. Uma rápida pesquisa na internet é suficiente para nos depararmos com centenas de fotos de gôndolas de supermercados de países como a Alemanha e a França. Ali encontraremos uma intensa competição entre marcas de café cuja matéria-prima é, em parte, made in Brazil. Nesse caso, os desequilíbrios na distribuição do valor ao longo da cadeia se repetem. Afinal, segmentos ligados à criação de atributos intangíveis – a marca, a identidade, o design das embalagens – seguem trazendo excelentes frutos a empresas e profissionais baseados no Primeiro Mundo, em um processo que, em perspectiva histórica, vem transferindo uma parte decrescente das riquezas geradas na cadeia de valor aos países produtores de commodities.
A fim de desfazer essa lógica, precisaríamos buscar um padrão de integração diferente às cadeias globais de valor. Parte dessa busca implica a desconstrução de noções arraigadas no imaginário popular. Voltemos ao exemplo das vacinas. Se, ao invés de falarmos de “vacina de Oxford” falássemos de uma vacina cuja produção resulta da cooperação entre organizações públicas e privadas de distintos países, talvez pudéssemos enaltecer o papel de cada um dos participantes nesse esforço coletivo e, quem sabe, cobrar um pouco mais por esforços de diferenciação ao longo da cadeia de valor do produto. Ao insistir em definições simplistas, acabamos ocultando grande parte da complexidade por trás dos processos, algo que dificulta o reconhecimento da contribuição particular de cada elo da cadeia de valor.
No caso do café é parecido. O pacote que encontramos nas gôndolas de um supermercado europeu ou estadunidense resulta de uma complexa rede de relacionamentos. Porém, boa parte dessa contribuição segue escondida atrás de etiquetas que simplificam a mensagem. Garantir a apropriação de uma fatia maior do valor total da cadeia exige tornarmos essa mensagem mais complexa, explorando cada uma de suas nuances. Seremos capazes de exercitar a nossa criatividade e desenhar estratégias para transformar as “verdades” e “conceitos” que hoje definem a distribuição de valor naquelas cadeias das quais fazemos parte? Para isso, antes de tudo, precisamos abandonar a tal superficialidade que insiste em aparecer no debate público nacional.