O recente escândalo envolvendo três conhecidas vinícolas é mais um capítulo em uma longa história de desrespeito aos direitos humanos fundamentais no Brasil. Para quem não leu o noticiário, uma operação conjunta do Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal revelou que uma empresa ligada à indústria do vinho de Bento Gonçalves mantinha centenas de trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Em uma “economia de mercado” digna de tal denominação, a ausência de coerção é um requisito incontornável para o estabelecimento de relações de trabalho mutuamente benéficas. Na empresa capitalista dos livros de economia, tanto o patrão pode demitir o empregado quanto o empregado “demitir” o patrão, procurando outro emprego. Se vivemos em uma sociedade com características que diferem dos exemplos encontrados nos livros de economia, a culpa é também de um setor privado que, não raramente, recorre a práticas corporativas abomináveis.
Não que a apuração das responsabilidades seja uma missão fácil. Em um primeiro momento, as vinícolas poderiam argumentar que a culpada é a prestadora de serviço. Exemplo desse raciocínio é a nota de esclarecimento divulgada pela vinícola Aurora. No texto, a empresa salienta que “não compactua” com a manutenção de trabalhadores em condição análoga à escravidão. Ainda, o texto sublinha os recursos financeiros alocados para a contratação de prestadores de serviços – algo que inclui não apenas os valores repassados aos responsáveis pelo recrutamento de trabalhadores, mas também gastos com treinamento e alimentação.
Se esse é realmente o caso, a empresa comete um gravíssimo erro de natureza estratégica. Sob um ponto de vista organizacional, a vinícola está delegando uma “tarefa” a um prestador de serviço. A tarefa delegada é o recrutamento de trabalhadores, que serão responsáveis por diversas atividades no período de colheita das uvas. Em troca, o prestador de serviço entregará um determinado “resultado”. Por exemplo, o resultado poderia ser tanto o número de trabalhadores recrutados quanto a sua contribuição para o êxito da vindima.
Ocorre que a relação entre a vinícola e o prestador de serviço é enquadrada por um contrato. Nele, três dimensões são definidas: (i) a forma como o desempenho do prestador de serviço será mensurado – ou seja, como avaliar se o “resultado” é satisfatório; (ii) os incentivos para o prestador de serviço – ou seja, a forma como será remunerado; e (iii) a alocação dos direitos de decisão – ou seja, o grau de autonomia que o prestador de serviço terá para definir como lidará com a tarefa.
Se o prestador de serviço recorre a práticas abomináveis para entregar um “resultado”, é evidente que algo não está funcionando. Qualquer empresa minimamente preocupada com a sua imagem possui um amplo arsenal retórico para enfatizar o respeito aos direitos fundamentais. Se a preocupação é sincera, porém, a preocupação com a dignidade humana não deve se limitar às belas palavras nas redes sociais. Supondo que as empresas envolvidas no escândalo sejam contrárias à manutenção de trabalhadores em condição análoga à escravidão, faltou maior cuidado com a arquitetura organizacional que sustenta as relações na cadeia agroindustrial.
Em primeiro lugar, é necessário que as lideranças não se omitam e estabeleçam limites não negociáveis para as práticas no interior da empresa. Diga-se de passagem, é o estabelecimento de tais limites o principal motor para a diferenciação de qualquer organização. Um limite não negociável deve ser respeitado mesmo que isso implique custos mais altos para a empresa. Afinal, se a liderança da empresa considera que tais limites ajudam a criar valor no longo prazo, não há razão para temer eventuais gastos no presente.
Em segundo lugar, limites não negociáveis devem moldar o desenho de todos os contratos relevantes para a organização. Assim, ao delegar uma tarefa para um prestador de serviço, a empresa deverá definir as variáveis a serem mensuradas para determinar o desempenho da empresa contratada e os incentivos para que o serviço seja entregue de maneira adequada. Além disso, estabelecerá o grau de autonomia que o prestador de serviço terá para definir como levar a cabo a tarefa delegada.
É evidente que, na melhor das hipóteses, as empresas envolvidas no escândalo pecaram pela omissão. Mais especificamente, estamos diante de empresas com líderes incapazes de estabelecer limites não negociáveis em um quesito fundamental como o respeito aos direitos humanos fundamentais. A consequência é a incapacidade de desenhar contratos capazes de organizar o processo de delegação de tarefas de acordo com tais princípios.
Em resumo, a empresa que diz se preocupar com objetivos sociais ou ambientais sem dar atenção ao desenho da sua arquitetura organizacional está fadada a seguir jogando palavras ao vento.