Por Bruno Varella
O ano era 2002 quando Patricia Rothgeb cunhou o termo “terceira onda do café”. Seu objetivo era descrever aquilo que observava na Escandinávia: cafeterias locais dedicadas a oferecer uma bebida que não tivesse apenas alta qualidade, mas que refletisse um novo padrão de coordenação entre os agentes da cadeia. Até então, a comercialização do café envolvia, em grande medida, um esforço de padronização: tanto a “primeira onda”, caracterizada pela popularização do consumo do produto nas residências do mundo desenvolvido, quanto a “segunda onda”, com suas redes de cafeterias idênticas, exploravam oportunidades de negócio ligadas ao consumo de massa. A “terceira onda” prometia levar a diferenciação a novos limites, explorando a enorme diversidade existente no setor do café. Para cada consumidor, existiria uma xícara perfeita.
A chave para a emergência dessa “terceira onda do café” seria o uso intensivo de informação. Afinal, o avanço tecnológico contribuiria para a progressiva disseminação do conhecimento por trás dessas cafeterias com uma proposta radical de diferenciação. Aos empreendedores interessados em embarcar na “terceira onda”, as transformações sociais observadas desde a virada do século XXI reduziam os custos de obtenção do conhecimento necessário para o oferecimento de um café de alta qualidade. Inovações como os computadores pessoais e os smartphones facilitavam não apenas o aprendizado de baristas e a conscientização de consumidores, como também a coordenação com os fornecedores da matéria-prima. Nos centros urbanos do Hemisfério Norte, um processo de renascimento impulsionaria novos hábitos de consumo. Ganhavam importância os espaços públicos de convivência, as rotinas de trabalho flexível e a busca por conexão com o entorno.
O enredo dessa história é carregado de otimismo. As cafeterias vinculadas à “terceira onda do café” transmitem muito mais do que a busca por uma bebida de alta qualidade. Para além da experiência imediata, tais transformações refletem uma mudança profunda na forma como milhões de pessoas planejam as suas rotinas. Um sinal do apelo dessa tendência é a busca por “receitas” que permitam replicar o modelo de cafeteria local especializada em bebidas de alta qualidade. Já há quem mencione uma “quarta onda do café”, em que a massificação daquilo que hoje é nicho ocorreria ao mesmo tempo em que novos nichos surgiriam. Em outras palavras, consumidores exigentes – e curiosos – continuariam a empurrar os limites da criatividade do setor do café em direção a novas oportunidades de diferenciação.
Encontrar tamanho otimismo não deixa de ser surpreendente. Afinal, a confiança de muitos na capacidade do setor do café de continuar criando valor contrasta com o pessimismo compartilhado por milhões de cafeicultores ao redor do planeta. E não poderia ser diferente. Boa parte desse movimento é impulsionado pelo oferecimento de atributos intangíveis criados muito longe das propriedades rurais. Mesmo as referências à realidade do segmento produtor costumam ser definidas por agentes atuantes nos segmentos da cadeia mais próximos ao consumidor. Nesse sentido, o discurso que sustenta o processo recente de criação de valor no setor do café é resultado de uma dinâmica que, em grande medida, ignora as especificidades da atividade rural. Pode soar exagerado, mas é possível que o setor imobiliário tenha se beneficiado mais com a “terceira onda do café” que os cafeicultores. Chama a atenção o efeito positivo que uma cafeteria local em um país como os Estados Unidos possui sobre a sua vizinhança. Ali, o nascimento de um novo espaço de convivência e troca de experiências evidencia um processo mais amplo de renascimento urbano, possivelmente valorizando as propriedades ao redor.
Menos claras são as consequências desse processo de avanço da diferenciação para o bem-estar econômico de milhões de produtores. Não que todos os cafeicultores tenham perdido com tais mudanças. À primeira vista, o fato que milhões de pessoas queiram pagar mais por uma xícara de café deveria ser celebrado como uma oportunidade única. É triste constatar, porém, que apenas uma minoria tem sabido traçar estratégias efetivas de apropriação de valor. Para participar da “festa”, é necessário que uma parcela maior do segmento produtor seja capaz de participar ativamente do processo de criação do valor intangível. Trata-se de um desafio hercúleo. Provavelmente será necessário correr algum risco, estabelecendo parcerias que permitam aos cafeicultores uma maior aproximação dos consumidores. Por sinal, talvez seja necessário investir mais recursos – tempo, conhecimento e dinheiro – em um aumento da presença em outros segmentos da cadeia, explorando sinergias com agentes com interesses parecidos.
Poderiam as cooperativas contribuir para que o setor tenha uma visão estratégica mais refinada? Qual seria o papel das associações setoriais? E a função do governo? Precisamos aprofundar a reflexão sobre como unir forças a fim de potencializar a influência do segmento produtor sobre a dinâmica de criação e apropriação de valor da cadeia do café. Para tanto, será preciso conhecimento, dinheiro e predisposição a construir laços entre os muitos participantes do setor.