Por Bruno Varella
O povo foi às ruas – ou, ao menos, uma parcela do povo foi às ruas – e a impressão é a de que seguimos na mesma encruzilhada. No atual cenário de conflito político, é provável que todos os lados tenham algum motivo para sentir “esperança”. Por um lado, o núcleo duro da administração Bolsonaro vem conseguindo consolidar uma base de apoio relativamente coesa, e que talvez seja suficiente para evitar uma deterioração acelerada de um governo até o momento espalhafatoso. Por sua vez, a oposição demonstra que, se não decolou, é mais por desorganização e falta de inspiração dos seus integrantes do que por falta de demanda.
Os limites de tais esperanças, porém, são de difícil previsão. Qualquer avaliação das consequências das manifestações ocorridas nas últimas semanas corre o risco de “envelhecer” já no curto prazo. Afinal, o atual momento de ebulição vai além de uma disputa para definir a correlação de forças no tabuleiro político brasileiro. Acima de tudo, observamos um esforço de transformação da estrutura que permite – ou deveria permitir – a convivência entre essas forças antagonistas.
De um lado, a ala “programática” da administração Bolsonaro não esconde o desejo de sacudir as estruturas do sistema atual e implementar um processo de desconstrução do regime criado com a Constituição Federal de 1988. Diante do possível teste sobre o grau de flexibilidade do nosso arcabouço institucional, não é de duvidar que parcelas crescentes da oposição passem a moldar uma agenda de desconstrução alternativa ao longo dos próximos anos. Afinal, é relativamente pequeno o grupo disposto a defender o regime de 1988 até as últimas consequências. Embora tenham acesso privilegiado aos meios institucionalizados de propagação de ideias, as vozes defendendo a integridade da Nova República talvez não encontrem eco suficiente na lógica eleitoral a ser revelada nos próximos anos.
Infelizmente, é provável que estejamos criando grandes “caixas de ressonância”, cada qual com seu conjunto de dogmas e preconceitos, e sem paciência para escutar o outro lado da conversa. Diga-se de passagem, o Brasil não é o único país a viver essa situação. Para quem tem medo de o país “virar uma Argentina”, a polarização atual não deixa nada a desejar àquela existente no confronto entre Cristina Kirchner e a oposição. Caso se aprofunde, a atual lógica de busca pelo confronto pode levar a uma polarização ainda maior no parlamento. Uma pergunta fundamental diz respeito ao futuro do famoso “Centrão”: dado que eleito com os votos de milhões de brasileiros, de que forma a fama crescente do bloco afetará as chances eleitorais dos seus membros no futuro? Veremos uma migração – ou uma substituição – que favorecerá o crescimento dos extremos do debate político?
Em outras palavras, resta saber se uma polarização levaria à criação de dois grupos antagônicos – uma realidade que, em caso da conformação de maiorias coesas, poderia até facilitar a aprovação de leis – ou resultará em um quadro de pulverização sem diálogo. Independentemente do desfecho, teríamos problemas à vista. Afinal, uma realidade em que dois grupos incapazes de estabelecer um denominador comum se alternassem no poder significaria um processo de desconstrução contínua das instituições. Um cenário marcado por reformas e contra-reformas, segundo o humor do eleitorado, seria um duro golpe para um país que, mesmo com dificuldade, articulou consensos fundamentais entre meados da década de 1990 e o início da atual crise.
A fim de evitar uma polarização exacerbada, toda a responsabilidade é pouca. E isso inclui evitar o discurso fácil de que “tal reforma salvará o país”. Apenas para ficar no exemplo mais discutido, é desnecessário repetir que a reforma da Previdência é condição necessária para a correção da preocupante trajetória das contas públicas do Brasil. Nada garante, porém, que uma mudança nas regras desse jogo seja suficiente para sustentar um processo de expansão da economia brasileira. Em primeiro lugar porque são diversos os cenários possíveis de reforma. Ademais, uma nova Previdência não se traduz em uma melhora automática de todos os indicadores que sustentariam um ciclo virtuoso no país. Quem simplifica a mensagem na esperança de acelerar a concretização do objetivo pode estar plantando as sementes para instabilidades ainda maiores no futuro.
Afinal, vender a reforma com um discurso exageradamente otimista apenas aprofundaria o descontentamento em caso de dificuldades no futuro. E as dificuldades virão. Independentemente do desfecho do debate no Congresso, estamos testemunhando importantes transformações estruturais na economia mundial. Em outras palavras, observamos o nascimento acelerado de novos setores e o encolhimento de outros fundamentais para explicar o funcionamento das economias industriais típicas do século XX. Muitos ganharão com isso, mas outros tantos perderão. Com ou sem reforma da Previdência, novas tendências na organização da atividade econômica – flexibilização dos contratos, automação de processos, concentração em setores intensivos no uso de mão-de-obra – já serão suficientes para deixar muita gente de mau humor.
Nem precisaríamos tentar adivinhar o futuro para pedir uma abordagem mais cuidadosa antes de prometer um futuro brilhante. Para quem ainda acredita na existência de soluções infalíveis no campo da economia, iniciativas tanto de partidos de esquerda quanto de direita nos mostram que não é bem por aí. Conforme bem lembrou o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, o voluntarismo intervencionista durante o governo de Dilma Rousseff canalizou recursos para setores específicos na esperança de estimular a economia. Quem recebeu o agrado não reclamou, mas tampouco investiu. Deu no que deu.
Outro exemplo interessante vem da Argentina, onde a eleição de Mauricio Macri foi vendida como uma espécie de “solução para todos os males”. O tempo passou e um número crescente de argentinos se mostra irritado com a falta de avanços: a inflação e a recessão assombram a vida de milhões de cidadãos e a administração parece carente de ideias. Diante de uma crise potencialmente destrutiva, só restou a velha tática de peregrinação ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O resumo da história: há quem diga que o movimento político encabeçado por Cristina Kirchner poder voltar ao poder, um desfecho tido como irrealista há apenas 4 anos.
Em resumo, se não acreditarmos que a manutenção do regime de 1988 tem um valor intrínseco, é possível que o sistema seja desconstruído em breve. A crença em uma solução rápida para a retomada da economia e a “pacificação” do Brasil foram argumentos bastante utilizados para justificar o apoio à plataforma vaga do candidato Jair Bolsonaro. E se os próximos meses confirmarem que a tal solução rápida somente existe nos relatórios de algumas corretoras e nos discursos dos políticos? E se, concretizada a reforma da Previdência, o país demorar mais do que o esperado para retomar a trilha do crescimento econômico?