Em uma série transmitida na rádio pública italiana em 2008, o historiador Andrea Giardina narra a trajetória de vinte imperadores emblemáticos do Império Romano. Entre as muitas histórias contadas, o intelectual italiano se detém a narrar a biografia de três imperadores que entraram para a história por sua megalomania: Calígula, Nero e Cômodo.
Ao descrever a vida de Calígula, Giardina discute o quão difícil é analisar com frieza as origens e consequências da loucura na condução de um experimento político tão complexo quanto o Império Romano. Via de regra, os autores que nos contam as peripécias de personagens como Calígula e Nero escreveram suas obras décadas após o seu desaparecimento – e, portanto, foram diretamente influenciados por interpretações e avaliações parciais da obra desses imperadores. Não raramente, boatos e exageros se misturam à descrição de fatos transmitidos através das gerações. O resultado é a potencialização dos traços de loucura.
Não que tais exageros carecessem de método. Segundo Giardina, a caracterização de um determinado imperador como “louco” era um artifício que, em certa medida, liberava o restante da sociedade do pesado legado de uma administração desastrosa. Assim, seria como se os problemas do Império se limitassem à personalidade errática do seu líder – uma pessoa que poderia ser eliminada com uma conjura de palácio ou uma rebelião militar. Uma vez “corrigido” o problema, o caminho da prosperidade se reabriria.
Embora direcionadas a um período histórico distante, as palavras de Andrea Giardina nos ajudam a refletir sobre o momento atual. Afinal, não foram poucas as pessoas que compararam o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao imperador romano Nero. Seria a “loucura” de Trump dotada de algum método? Podemos realmente definir o presidente estadunidense com tal adjetivo? Estaríamos diante de uma espécie de “parênteses”, logo suplantado por uma administração mais próxima da tradição do país? Finalmente, até que ponto o triunfo de Trump resulta de conflitos mais profundos na sociedade dos Estados Unidos?
São perguntas de difícil resposta – e é provável que respostas definitivas demandarão tempo e análises serenas. Muito antes de finalizado o julgamento da história, entretanto, teremos um importante teste do nível de “loucura” de Trump no fim de 2020. O motivo: as eleições presidenciais nos Estados Unidos, cujas pesquisas apontam o favoritismo do candidato do Partido Democrata, Joe Biden. Pois bem, essas eleições nos mostrarão até que ponto Donald Trump está disposto a flertar com a ruptura de antigas tradições e costumes.
Desde o momento de ascensão ao poder, Donald Trump e uma parte de sua equipe demonstraram um certo gosto pelas mensagens de efeito destinadas a desestabilizar a atual ordem internacional – cuja construção, diga-se de passagem, se deveu principalmente ao protagonismo estadunidense. Ameaças de corte de financiamento feitas a uma série de instituições internacionais como a Organização Mundial da Saúde, sinalização de quebra de acordos com aliados históricos como a Alemanha, endurecimento do discurso contra o governo da China: são muitos os exemplos desse comportamento. É bem verdade, houve muita fumaça para pouco fogo – cortesia da incontinência verbal de Trump e da massificação das redes sociais. De qualquer maneira, os anos Trump ficarão marcados pelo acirramento das tensões na esfera global.
No plano local, porém, parece predominar uma certa confiança de que a administração Trump não foi capaz de desestabilizar as fundações do arcabouço institucional dos Estados Unidos. Apesar das polêmicas circunstanciais, o governo continua funcionando – imperfeitamente, como qualquer organização complexa – e a separação dos poderes se mantém. “Louco”, “gênio” ou “revolucionário”, para muitos Trump seria apenas mais um líder a tentar deixar uma marca na história, sem que tais tentativas deixassem mais do que alguns arranhões no robusto tecido institucional estadunidense.
Com as eleições presidenciais de novembro, é possível que esse arcabouço institucional seja colocado à prova de uma forma decisiva. Afinal, a reação de Trump em caso de derrota segue uma incógnita. Uma eventual recusa do atual presidente em aceitar o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos nos levaria a mares nunca navegados.
Durante os últimos 70 anos, cientistas sociais ligados às mais diversas áreas do conhecimento utilizaram as transições de mandato pacíficas nos Estados Unidos como um exemplo de relação entre estabilidade institucional e desenvolvimento econômico. Se algo explicaria o desempenho formidável da economia estadunidense desde a crise de 1929 até os dias atuais, é justamente a estabilidade nas regras do jogo que faz com que investidores e poupadores não temam “viradas de mesa” como as que caracterizam a história de tantos países latino-americanos. A confiança no sistema garantiria a tranquilidade para que as pessoas pudessem se dedicar à criação de riqueza.
O que ocorrerá se Trump decidir desafiar uma regra do jogo tão fundamental como a noção de que, nos Estados Unidos, as transições de poder são pacíficas? Com base nas teorias e interpretações disponíveis, uma conclusão natural seria a de que uma eventual derrota de Trump seguida de uma recusa em reconhecer o resultado das eleições traria enorme tensão ao cenário político e econômico. Do dia para noite, milhões de investidores começariam a buscar alternativas de investimento consideradas mais seguras. A partir daí, ninguém é capaz de prever qual seria o fôlego do presidente estadunidense para lidar com esse cenário turbulento. De qualquer maneira, Trump abriria um perigoso precedente.
De fato, podemos dizer que o precedente seria o legado mais tóxico acoplado à rebeldia de Trump. Se o atual presidente perder a disputa e realmente optar pelo conflito, é possível que o dia seguinte seja menos intranquilo do que o esperado. No cenário corporativo, por exemplo, talvez pouca coisa mude no curto prazo. No médio prazo, porém, é evidente que uma manutenção das tensões políticas erodiria progressivamente a confiança de investidores e empreendedores. Ou seja, estaríamos falando de uma decadência em câmera lenta. Para quem deseja entender as consequências da instabilidade política sobre o desempenho econômico de longo prazo, basta analisar a trajetória da economia da Argentina de 1930 até os dias atuais.
Obviamente, essa é apenas uma hipótese inspirada no conhecimento acumulado até o momento. É possível que Trump vença a disputa ou que perca e siga a tradição de aceitar o resultado eleitoral. Ainda, é possível que uma eventual derrota de Trump seguida de um conflito político não abale as estruturas do mercado financeiro estadunidense no médio prazo, revelando novas nuances do nexo de relações e acordos que sustenta a estabilidade política e econômica dos Estados Unidos.
Diga-se de passagem, se este último cenário se concretizar, serão os economistas e cientistas políticos a entrarem em crise após constatarem as limitações das explicações disponíveis sobre a relação entre instituições e desenvolvimento econômico. Mais do que nunca, entraríamos em um terreno nunca percorrido – com importantes implicações para o futuro das democracias liberais, esse fenômeno do século XX que certamente ajuda a explicar a pujança atingida por países como os Estados Unidos, mas que talvez não resista às mudanças sociais e tecnológicas em curso.