A eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil deve abrir um período de relativa volatilidade na condução política do país. Movidos pelo medo – irracional? – de criação de uma nova Venezuela, milhões de brasileiros escolheram um modelo que nos aproxima de países como as Filipinas e a Hungria. Ou, ao menos, é isso o que as poucas evidências sugerem. Que os mais otimistas não se enganem: criar memes é bem mais fácil do que governar um Estado. Deixando de lado uma dezena de declarações genéricas, pouco sabemos sobre os planos de Bolsonaro. Tampouco nos ajuda muito agregar as opiniões dos principais membros da equipe: basta observar o ciclo de desautorizações e contradições – e a posterior imposição do silêncio aos membros da equipe – ao longo das últimas semanas.
Nunca é demais lembrar, contradições fatalmente aparecerão com o estabelecimento de um plano de governo. Não está claro como a frágil e heterogênea base de sustentação do presidente eleito lidará com tais disputas. Até que ponto o apoio a Bolsonaro faz sentido para cada um dos grupos que o alçaram ao Palácio do Planalto? Por exemplo, como lidarão os entusiastas do “mercado” com possíveis desentendimentos entre Paulo Guedes e outros membros da cúpula do governo? Ou ainda, de que forma responderá a ala “militar” diante de planos da privatização de empresas atuantes em setores estratégicos, como energia e petróleo? Ou, para resumir aquela que deve ser a pergunta-chave nos próximos meses: quem pagará a conta do ajuste?
No caso de Bolsonaro, os inevitáveis momentos de tensão no interior de sua base de apoio talvez serão ainda mais importantes do que no passado. Trata-se de algo natural no mundo da política; o que costuma variar é a solução dada aos percalços encontrados pelo caminho. Ora, o político tem uma carreira marcada por um discurso abertamente “anti-sistema”. Se, diante de uma crise, Bolsonaro optará por oferecer “mais do mesmo” na tentativa de seguir adiante, dobrando a aposta em suas declarações mais polêmicas, só o tempo dirá. Igualmente, resta saber quanto cada um dos grupos que hoje o enxergam como um mal menor aceitará participar desse jogo.
Ademais, a percepção externa sobre o fenômeno Bolsonaro oscila entre a cautela e as avaliações negativas. O poder pode ser solitário, particularmente quando esbarra nas limitações da vida real. Falhas na tentativa de impor reformas frustram ainda mais quando acompanhadas de um discurso politicamente incorreto. Logo, será preciso mais do que aversão ao status quo para conquistar a confiança de fora. E, para os que traçam paralelos entre Bolsonaro e a retórica do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dois alertas importantes: o primeiro, uma vitória do Partido Democrata nas próximas eleições presidenciais do país levará o país a adotar um discurso bastante distinto. De possível parceiro, o Brasil se tornaria um alvo de críticas. Em segundo lugar, achar que uma relação privilegiada com o Brasil é uma consequência inevitável da doutrina Trump soa irrealista diante dos clamores de que “a América vem em primeiro lugar”.
Para o agronegócio, os próximos meses prometem ser de tensão. Afinal, a etiqueta “agronegócio” abriga uma heterogeneidade maior do que as simplificações sugerem. A proposta de unificação entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente nos oferece um bom exemplo dessa diversidade. Para os inúmeros empreendedores ao redor do Brasil que têm se esforçado a promover a imagem de um agronegócio sustentável, a medida é uma péssima notícia. Em tempos de “guerras comerciais” e apelo ao discurso protecionista, qualquer notícia é desculpa para a imposição de barreiras. Se negociar com a União Europeia já era difícil, ideias como a saída do Acordo de Paris podem dificultar qualquer avanço qualitativo em nosso acesso ao mercado europeu. Anos de esforço de construção da imagem do setor poderiam ir por água abaixo.
De fato, quem pensa que o futuro do agronegócio brasileiro passa exclusivamente pela retirada de quaisquer barreiras ao uso dos recursos do país se engana profundamente. Em grande medida, nosso êxito depende da capacidade de vender produtos no exterior. No médio prazo, diria que o desafio é maior: precisamos ter maior capacidade de definir as características daquilo que exportamos. Muito se fala sobre agregação de valor. Pois bem, agregar valor no século XXI significa incorporar atributos tangíveis e intangíveis aos bens e serviços comercializados. Qualquer deslize na agenda ambiental fará o Brasil desperdiçar um dos seus principais trunfos estratégicos em nome de interesses de curto prazo de uma parcela do setor produtivo.
Ao falar de política externa, Bolsonaro e seus colaboradores tendem a privilegiar um realinhamento das relações brasileiras – contra supostos critérios “ideológicos”. Tendem a esquecer, entretanto, que as linhas gerais da diplomacia brasileira se caracterizam por uma série de práticas e ideias estáveis desde os anos 1960. Se o país busca se relacionar com outros países em desenvolvimento, é porque tal estratégia tem oferecido oportunidades para a promoção do crescimento econômico do país. Precisamos nos inspirar nas melhores práticas dos países desenvolvidos, e não buscar o alinhamento automático – ou conceder benefícios unilaterais a eles. Caso contrário, apenas experimentaremos o pior lado das relações assimétricas.
Querem outro exemplo de potencial tensão: Israel. Bolsonaro terá seus motivos para aproximar-se do governo israelense – sejam eles ideológicos ou religiosos. Diga-se de passagem, a ideologia não é um privilégio da esquerda: qualquer que seja a agenda, há uma visão de mundo por trás, com suas vantagens e desvantagens, previsões certeiras e pontos cegos. Pois bem, voltemos ao caso de Israel. Se a aproximação acrítica é o caminho a ser seguido, Bolsonaro certamente não o faz com base no pragmatismo econômico. É difícil enxergar um benefício semelhante ao que atualmente deriva dos bilhões exportados a países árabes. Correrá o risco de enfraquecer a presença brasileira em tais mercados, algo que afetaria o setor de proteína animal em um momento tão complexo?
São perguntas e dilemas que serão esclarecidos com o passar dos dias. De qualquer maneira, o discurso terá que adaptar-se à realidade. É bem verdade, eventuais limitações internas à implementação da agenda de Bolsonaro podem cair com o tempo – veja-se o exemplo de países como a Hungria. No entanto, não podemos impor um padrão de relacionamento com outros Estados soberanos. Tampouco podemos empurrar produtos a consumidores insatisfeitos com as notícias recebidas sobre nós. Ao calibrar nossas ambições em uma suposta “volta ao passado”, perdemos muito mais do que oportunidades de negócio.