Por Bruno Varella
Que me perdoem os otimistas, mas os desdobramentos da pandemia da covid-19 dificilmente incluirão um aumento da cooperação entre os Estados. É provável que o mundo que emergirá da atual crise seja ainda mais vulnerável aos apelos nacionalistas. Nas democracias liberais do Ocidente, a pressão exercida pelos milhões de indivíduos afetados economicamente pela pandemia deverá se traduzir em medidas protecionistas. A agricultura não é uma exceção: assistiremos a um crescimento considerável da difusão de mensagens como “buy local” – na tradução, compre alimentos produzidos localmente – no mundo desenvolvido. Aumentará também a preocupação com a segurança alimentar.
Ambas as pressões não nos levam necessariamente a um mesmo equilíbrio. Comecemos com a ideia de que “aquilo que é produzido localmente é melhor”. Na verdade, a covid-19 forneceria apenas uma espécie de sentido de urgência a tais apelos. Parcela importante do discurso ambientalista já é baseada em ideias semelhantes – mesmo que, não raramente, uma comparação entre os custos e benefícios do “buy local” seja vaga. Para além do protecionismo, há também quem se preocupe com a proteção do conhecimento acumulado em sistemas de produção com décadas – ou mesmo séculos – de tradição ou enfatize a qualidade dos produtos ali produzidos. Independentemente da necessidade escolhida para justificar o “buy local”, a tendência deve ganhar espaço.
A União Europeia é um excelente exemplo. Refletindo o humor nas sociedades dos seus membros, termos como “cadeias curtas de suprimento” são parte integrante da retórica da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Obviamente, resta saber a capacidade de tradução desses anseios em realidade. De qualquer maneira, o simples fato de líderes políticos pertencentes ao establishment – Ursula von der Leyen é uma política alemã conservadora aliada de Angela Merkel – ecoarem a mensagem de que o “local é melhor” deveria ativar os alertas entre os principais exportadores agrícolas do planeta. Se abrir mercados já era difícil em tempos de defesa do multilateralismo comercial, o que ocorrerá na era do “buy local”?
Ao mesmo tempo, é crescente a preocupação com a segurança alimentar. Não que tal preocupação fosse inexistente no passado, mas chama a atenção à ênfase dada ao “nós” e aos “outros” nesse debate. Mesmo países desenvolvidos poderão abraçar uma retórica que, acreditava-se, era típica de países em desenvolvimento preocupados com a fome. Com a crise da covid-19 e o fechamento parcial das fronteiras, não são poucas as pessoas que se perguntam: e se desastres ainda piores ocorrerem no futuro? Garantir o acesso a alimentos parece um objetivo pertinente em momentos de incerteza. A grande questão é como garantir tal acesso. É interessante perceber que a preocupação com a segurança alimentar não necessariamente reforça o discurso do “buy local”. Pode ser o caso em países europeus como a Alemanha e a França, acostumados a associar ambas as discussões desde o século XIX. Porém, muitos Estados do mundo seriam incapazes de garantir a segurança alimentar de seus habitantes sem recorrer ao mercado internacional.
Daí a complexidade do cenário adiante. O atual momento de recrudescimento do nacionalismo oferece riscos e oportunidades a países exportadores agrícolas como o Brasil. No curto prazo, é possível que as oportunidades sejam até maiores que os riscos. Afinal, a materialização de objetivos como o “buy local” podem depender da reorganização das cadeias de suprimento, algo que demanda tempo e recursos. Diga-se de passagem, muitos dos que exortam o “buy local” se esquecem de verificar se as sociedades onde vivem “produzem localmente”. Ao mesmo tempo, a ansiedade pela busca de segurança alimentar pode levar muitos países a reduzir as barreiras à importação de produtos agrícolas – em um impulso que dependerá, obviamente, do nível de desorganização dos sistemas produtivos ao redor do mundo.
No longo prazo, é difícil saber como o recrudescimento do nacionalismo afetará o equilíbrio entre os anseios por “buy local” e segurança alimentar. Se a crise da covid-19 abre certa margem de manobra para os países exportadores agrícolas, não é certeza que o futuro reserve oportunidades similares. É provável que os instrumentos de governança multilateral do comércio internacional percam ainda mais força, tornando a abertura de mercados o resultado de um complexo cálculo de interesses geopolíticos. Ao menos nos países desenvolvidos, pode-se dizer que a imagem de cada um dos exportadores agrícolas será um fator que poderá impulsionar ou frear os apelos pelo “buy local”. Qualquer deslize poderá ser usado como desculpa para medidas voltadas a substituir importações.
De fato, a era dos nacionalismos será também marcada pela busca constante por bodes expiatórios para justificar medidas unilaterais. Trata-se de uma realidade que nos revela enormes riscos. Afinal, o Brasil, com sua política negacionista em temas como a saúde e o meio ambiente, vem se esforçando bastante para ocupar esse papel de alvo preferencial das críticas da comunidade internacional. A situação pode piorar: uma vitória do Partido Democrata nas próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos aumentaria ainda mais o nosso isolamento.
Portanto, a menos que acreditemos que mercados como a Hungria e a Polônia são complementares ao nosso, precisamos recalibrar a imagem que estamos projetando. Caso contrário, correremos o risco de vermos portas fechadas no futuro aos nossos produtos. Em outras palavras, precisamos pensar sobre como lidaremos com o desafio de convencer o mundo de que o caminho da segurança alimentar passa pela aquisição de produtos “made in Brazil”. Tanto os nossos concorrentes quanto os promotores do “buy local” querem nos substituir. Se o objetivo do agronegócio brasileiro é manter a sua trajetória de crescimento, refletir sobre tal desafio é um passo fundamental.