Não resta dúvida que a mudança tecnológica transformará o mundo em que vivemos. Para chegarmos a tal conclusão, basta observarmos o passado. As paisagens criadas com a Revolução Industrial, com suas ferrovias e chaminés fumegantes, são muito diferentes dos cenários da pós-industrialização, com suas ciclovias e espaços de coworking. Tampouco resta dúvida que tais transformações criarão “vencedores” e “perdedores”. A história é repleta de exemplos de clusters ora pujantes, ora decadentes.
Diante de efeitos tão drásticos sobre a forma como vivemos, competimos e cooperamos, é natural que o termo “mudança tecnológica” abrigue um diverso repertório de causas e desdobramentos. De fato, nem toda mudança tecnológica gera consequências idênticas. Pensemos na diferença entre “tecnologia de sustentação” e “tecnologia disruptiva”. No primeiro caso, estamos falando de melhorias incrementais em uma tecnologia já existente – por exemplo, alguma inovação que permita a produção de um bem ou serviço de forma mais eficiente. Já no segundo caso, o que ocorre é a introdução de uma nova tecnologia com a capacidade de transformar completamente uma indústria, erodindo a posição daquelas empresas incapazes de acompanhar as novas tendências.
Abundam os exemplos das consequências da introdução de tecnologias de sustentação na agricultura. Padrões de adoção e difusão de tecnologias de sustentação ajudam a explicar os ganhos de produtividade na agricultura mundial ao longo do século XX. Também são úteis as tecnologias de sustentação caso queiramos compreender as dificuldades de milhões de agricultores de acompanhar as transformações no setor. Via de regra, quem resiste à mudança, ou é incapaz de mudar, enfrenta dificuldades. O raciocínio vale tanto para propriedades rurais individuais quanto para regiões e países inteiros. De qualquer maneira, a disseminação de tecnologias de sustentação tende a criar “vencedores” e “perdedores” dentro das “fronteiras” tradicionais do setor econômico sob análise.
Por sua vez, tecnologias disruptivas são cada vez mais importantes para explicar tendências na agricultura. Cientistas e empreendedores vêm trabalhando de forma incansável no desenvolvimento de produtos que substituiriam alimentos tradicionalmente exportados pelo Brasil. Exemplos incluem as distintas iniciativas voltadas à produção de “carne sintética” ou projetos como o de desenvolvimento de um “café molecular” obtido em laboratório. Da mesma forma, novidades dignas dos melhores filmes de ficção científica, como a impressão 3D de alimentos, já podem ser encontradas nas feiras de negócios e publicações especializadas. Nesse caso, “vencedores” podem surgir em ecossistemas originalmente distantes das “fronteiras” tradicionais do setor econômico sob análise.
O que, então, estimularia o desenvolvimento de tecnologias disruptivas? A possibilidade de ganho econômico é uma razão óbvia, mas não a única. A percepção de que um setor deve ser transformado a fim de mitigar problemas por ele criados pode ser um poderoso estímulo para propostas de transformação radical. Em certa medida, tal espírito anima a busca por soluções tecnológicas na agricultura. Muitas análises partem da identificação de problemas derivados da atividade agrícola – emissões de gases de efeito estufa, desmatamento ilegal, contaminação – para, então, justificar a busca por formas alternativas de produção de alimentos. Em contraposição a tal modelo, surgiria uma nova agricultura apoiada no desenvolvimento de tecnologias disruptivas capazes de garantir um uso mais eficiente dos recursos disponíveis no planeta.
O que poucos parecem perceber é que, ao menos implicitamente, esse raciocínio nos revela o ideal de uma “agricultura sem agricultores”. Os protagonistas, nessa nova lógica, são as empresas startups, os laboratórios e as fazendas verticais. Mesmo as consequências imprevisíveis do clima – um aspecto fundamental para explicar a adoção de modelos organizacionais e a consolidação de vantagens competitivas na agricultura – passam a ser vistas como um elemento perturbador, e que, portanto, deve ser anulado. Configura-se, assim, um processo de desterritorialização da produção de alimentos.
Trata-se de uma transformação que, ao tentar mitigar determinados problemas, poderá criar outros. A vitalidade dos espaços rurais constitui um aspecto fundamental para o desenvolvimento de qualquer território, principalmente quando articulada com as realidades urbanas ao redor. Uma vez mais, a história nos mostra – no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos, e em muitos outros países – que o dinamismo das comunidades rurais constitui um importante promotor de desenvolvimento capaz de fortalecer também as cidades. Na verdade, mesmo uma separação entre o “urbano” e o “rural” pode soar artificial, tamanho o potencial das relações entre tais categorias.
Ainda assim, percepções e discursos contam – e muito. Se quiser sentar à mesa e participar ativamente desse debate, a agricultura do presente e seus representantes terão que demonstrar coragem para reconhecer eventuais problemas derivados da atividade. Deverão também criar um discurso capaz de aliar tal reconhecimento – e a predisposição a trabalhar pela mitigação desses problemas – a uma agenda que saliente os múltiplos aspectos positivos derivados da atividade. Em outras palavras, é necessário estimular a canalização de uma parcela ainda maior dessa energia criativa para a resolução de problemas da agricultura tradicional.
Pode-se argumentar, e com razão, que as inovações recentes aplicadas à agricultura não chegam a ameaçar o status quo para aqueles produtores dispostos a adotar a mudança. No entanto, o jogo da disrupção se desenrola em um horizonte temporal mais amplo. Pode levar tempo, mas muitas das ideias “malucas” do presente serão viáveis no futuro. As transformações na agricultura não deveriam significar a emergência de uma “agricultura sem agricultores”. A melhor maneira de evitar a ameaça da substituição é reconhecer problemas que justificariam tais pressões e agir rápido para mitigá-los.