Engana-se quem pensa que a atual crise mundial dos alimentos é um evento absolutamente imprevisível. As raízes da crise têm crescido por cerca de 30 anos. Afinal, a atual configuração do sistema global de produção, distribuição e consumo de alimentos se baseia em uma série de premissas que, com um pouco de perspectiva histórica, se mostram irrealistas.
A primeira premissa é a confiança cega de que o notável nível de degradação ambiental acumulado nas últimas décadas não traria efeitos colaterais suficientemente dramáticos. Ao menos, essa é uma premissa implícita em toda a ação política e econômica desde os primeiros alertas sobre a questão da sustentabilidade, ainda nos anos 1970.
Quantos eventos climáticos extremos serão necessários para que tal concepção mude? Difícil responder. Mais fácil é prever as consequências da inação. Em um cenário de mudanças climáticas, será crescente o descolamento entre aquilo que o planeta pode produzir e nossas expectativas.
A segunda premissa é um exacerbado otimismo tecnológico. Embora inovações possam mitigar uma série de problemas, o ritmo da mudança não acompanha necessariamente a urgência dos eventos. Afinal, a transformação de uma invenção em algo concreto pode levar anos.
Não nos esqueçamos de que a inovação depende tanto da capacidade de coordenação de recursos escassos por parte de empreendedores quanto da predisposição de potenciais usuários a adotá-la. Em tempos de “negacionismo” crescente, é possível que aumente também a resistência à adoção de inovações.
A terceira premissa é a crença de que o atual sistema internacional é estável o suficiente para garantir o aprofundamento das relações econômicas internacionais. Não que a comunidade internacional acreditasse na extinção da guerra. Existia, porém, certa confiança de que eventuais conflitos não afetariam o “coração” do sistema.
Trata-se de uma aposta arriscada: basta lembrar que dois dos protagonistas da política internacional, China e Rússia, possuem questões de fronteira mal resolvidas. Se somamos a esse grupo a Índia, com sua enorme população e a posse da bomba atômica, os desafios são óbvios.
A quarta premissa é a de que a dependência do comércio internacional é mais conveniente do que qualquer política de segurança alimentar baseada no planejamento estatal. Mais especificamente, ganhou espaço a visão de que instrumentos como estoques estratégicos, acordos de estabilização de preços e programas voltados à agricultura de pequena escala são ineficientes e ultrapassados. Conclusão semelhante vale para a extensão rural.
Juntas, tais premissas criaram as condições para uma aposta explícita. Desde o início dos anos 1990, é crescente a pressão para o estabelecimento de políticas que, ao incentivar os indivíduos, priorizem a “criação de valor” no curto prazo. O resultado é que perdemos perspectiva do todo.
Embora tenhamos um sistema global de alimentos fortemente conectado, a flexibilidade desse sistema é mínima. Em outras palavras, para que o sistema funcione, é necessário um nível de previsibilidade em escala global que parece utópico atualmente. A soma de choques exógenos – pandemia, eventos climáticos extremos, guerra – nos demonstra: não temos um “plano B”.
Diga-se de passagem, não é a primeira vez que a humanidade é afetada por tamanhos choques exógenos. No século XIV, a Europa testemunhou pesadelo ainda pior. Entretanto, isso não deveria fornecer uma desculpa para a inação. O conhecimento acumulado nas últimas décadas pode nos ajudar a criar um sistema global de produção e distribuição de alimentos mais resiliente.
O que isso significa?
Significa pensar no desenho de um sistema em que a produção local de alimentos seja incentivada, utilizando terras mal aproveitadas ou explorando a agricultura urbana. Em outras palavras, implica a adição de um “plano B” à nossa oferta de alimentos.
Significa conceber um sistema em que o fomento ao comércio internacional não implique ignorar a existência de ferramentas políticas úteis, como estoques estratégicos e políticas de estabilização de preços. Afinal, para um produtor de pequena escala, basta uma má colheita para a falência. Para uma família em situação de insegurança alimentar, basta um ano de dificuldades para a cristalização de consequências irreversíveis.
Significa desenhar um sistema em que a sustentabilidade ambiental seja protagonista – algo que inclui recompensar os produtores de alimentos por seu papel na proteção do meio ambiente. Ou seja, trata-se de uma estratégia em que a busca por sustentabilidade signifique também a redução da incerteza para o produtor rural.
Significa, em suma, estabelecer prioridades claras e não renunciar aos mecanismos de decisão política para materializá-las. Mercados são instrumentos fundamentais para a promoção do bem-estar, mas a “mão invisível” só funciona de forma adequada se amparada em regras aceitas por toda a sociedade. E as tais “regras do jogo” devem ser escolhidas por meio da política.