Desde a década de 1980, é crescente a preocupação com a justiça na distribuição dos ganhos nas cadeias agroindustriais. Embora as respostas práticas a tal desafio ainda estejam limitadas a nichos de mercado, a conscientização progressiva dos consumidores contribuiu para a emergência de um relato favorável à empreitada. Atualmente, termos como “fair trade” e “local food” são parte do vocabulário de milhões de consumidores de países desenvolvidos. Com suas inúmeras possibilidades de diferenciação, o exemplo do café é ilustrativo. Mesmo quem não compra sabe do que se trata – e não raramente sente culpa por não aderir à tendência.
Por isso, não é uma coincidência que as tradicionais cadeias de supermercados venham experimentando modelos “híbridos”. Neles, velhas práticas são acopladas a uma estratégia voltada a atrair os consumidores dispostos a pagar mais por alimentos produzido em sua própria comunidade ou segundo padrões específicos. Ativistas criticam tais iniciativas, argumentando que diluem os propósitos de um movimento nascido com o objetivo de aumentar a remuneração dos agricultores ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que cria laços de solidariedade.
De fato, outra crítica comum à expansão de tendências como o “fair trade” e o “local food” ao domínio das grandes empresas salienta as múltiplas dimensões encapsuladas em um intercâmbio econômico. Por exemplo, o consumidor que frequenta um mercado especializado no oferecimento de alimentos produzidos em sua comunidade – como os “farmers’ markets” nos Estados Unidos – busca mais do que uma opção saudável ou sustentável. Indo além, existe o interesse pela construção de uma relação próxima com aqueles que lhe vendem a refeição de cada dia.
Ao estabelecer uma relação de confiança entre os provedores e os consumidores de alimentos, argumenta-se que estão dadas as condições para um padrão mais justo de intercâmbio. O princípio vale tanto para uma feira livre em um bairro de classe média dos Estados Unidos, quanto para o cafeicultor da América Central que é capaz de acessar o mercado da Suécia por meio de empreendedores sociais dispostos a reduzir a distância entre a produção e o consumo. Ademais, tal relacionamento ofereceria benefícios adicionais, como a percepção de construir relacionamentos que transbordam a mera transferência de recursos financeiros.
A teoria é inspiradora e a prática oferece exemplos interessantes ao redor do globo. Ainda assim, muitas questões sobre os limites da tendência persistem. Perguntas fundamentais merecem atenção: poderão os laços pessoais levar à consolidação de formas generalizadas de confiança em modelos alternativos de comercialização de produtos agrícolas? E, caso tais formas generalizadas de confiança se consolidem, será devido ao estabelecimento de estruturas hierarquizadas que estabeleçam padrões de convivência?
As perguntas acima podem soar abstratas – e elas são. Um exemplo talvez ajude a ilustrar a natureza do dilema. Imagine uma feira como os “farmers’ markets” típicos dos Estados Unidos, composta por dezenas de produtores locais de alimentos. Aos consumidores presentes, está aberta a possibilidade de discutir as características daquilo que compram e estabelecer um laço pessoal com o vendedor. Obviamente, não poderíamos estabelecer uma relação de confiança com quem não conhecemos; logo, o que ocorreria caso esse consumidor se mudasse a outra cidade? Seguiria confiando na oferta de um “farmers’ market” pelo simples fato de compartilhar princípios filosóficos semelhantes? Seria a relação com o vendedor a única base para a confiança nesse tipo de mercado?
Outro exemplo interessante é oferecido pelo movimento “comércio justo”. Diante do desafio de inserir mais produtores rurais à iniciativa, uma das opções encontradas foi a criação de um sistema de certificação. Ou seja, migrou-se de um estágio inicial marcado pelo estabelecimento de densas relações entre cooperativas de produtores, organizações não governamentais e importadores para uma espécie de “modelo híbrido às avessas” – embora solidário, o comércio justo utiliza muito do ferramental que sustenta os mercados tradicionais. Um grupo “dissidente” de ativistas argumenta que um dos resultados foi a perda de voz dos produtores no refinamento dos padrões, refletindo um processo de hierarquização do movimento. Entretanto, poderia ser diferente se a intenção é ganhar participação de mercado?
As perguntas acima merecem reflexão, pois apontam nós que ajudarão a explicar os rumos de nichos promissores. Muito se fala sobre diferenciação e sobre o papel de novas tendências na produção de modelos que potencializem o desenvolvimento de comunidades rurais. Precisamos ir um passo além, discutindo as bases institucionais para tal processo. Milhões de consumidores têm escolhido demonstrar a sua solidariedade por meio da rotina de consumo. Resta saber se tais decisões se devem a questões conjunturais ou respondem a um movimento de amadurecimento no oferecimento de sistemas confiáveis para a comercialização de produtos agrícolas.