Por Bruno Varella
Giuseppe Scionti é um pesquisador italiano. Utilizando os conhecimentos acumulados na área de “engenharia de tecidos humanos”, sua intenção inicial era desenvolver uma orelha que pudesse ser gerada com uma impressora 3D. Reproduzir a enorme complexidade do corpo humano representa uma tarefa hercúlea, entretanto. No futuro, quem sabe, tal pesquisa permitiria a produção de partes do corpo humano utilizáveis em cirurgias e transplantes. No curto prazo, o resultado mais tangível do experimento seria uma coleção de piadas dos colegas de laboratório, na Universidade Politécnica da Catalunha.
Com o passar das semanas, Scionti começou a enxergar outras potencialidades em sua pesquisa. Se a tecnologia nos permite pensar no desenvolvimento de algo tão complexo quanto um tecido humano, o que nos impediria de usar aparelhos semelhantes para a produção de alimentos para nosso consumo? Ou, conforme o pesquisador italiano costuma repetir em entrevistas à imprensa: quem come um bife de frango não está preocupado em entender todos os possíveis movimentos e contrações que aquele pedaço de carne faria caso fizesse parte de um organismo vivo.
Acreditando no potencial da ideia, Scionti fundaria a NovaMeat, uma empresa que pretende revolucionar a forma como a comida é produzida no mundo. Segundo o pesquisador, em um futuro “não muito distante” os consumidores começarão a imprimir alguns alimentos em suas cozinhas. No caso da chamada “carne de laboratório”, um estudo minucioso do conteúdo e consistência do produto permitiria o carregamento de impressoras 3D com os ingredientes necessários. Atualmente, Scionti já é capaz de produzir peitos de frango e bistecas bovinas sintéticas. O processo de produção de um bife de 100 gramas, que hoje demora 40 minutos, poderá ser reduzido consideravelmente se ampliado a uma escala industrial. O mesmo vale para os custos de produção, atualmente comparáveis aos observados na produção tradicional.
A descrição acima parece retirada de um roteiro de filme de ficção científica. No mundo real, porém, é crescente o interesse de investidores pela produção de carne de laboratório. Até mesmo a gigante Tyson Foods decidiu participar dessa cruzada – juntando-se a nomes como Bill Gates e Richard Branson. Não é o único caso de aposta em tecnologias com potencial disruptivo: em Seattle, uma empresa chamada Atomo garante que, no futuro, uma parcela crescente do chamado “café molecular” substituirá os grãos conhecidos por todos nós. A justificativa por trás da empreitada: com a mudança climática, aumentaria a incerteza sobre o futuro da cafeicultura em boa parte das regiões produtoras. Com isso, a produção de laboratório poderia complementar uma oferta reduzida pelas más notícias dos céus.
Tanto no caso da carne sintética quanto no exemplo do café molecular, preocupações com o meio ambiente e com os efeitos das mudanças na dieta no mundo em desenvolvimento incentivaram pesquisadores a buscar novas soluções para a produção de alimentos. Não sabemos quanto tempo será necessário até que tais tecnologias se consolidem – ou mesmo se tal cenário se concretizará. Ainda assim, a possível disrupção derivada do avanço tecnológico nos obriga a agir rapidamente. É provável que, nos próximos 20 anos, um cenário competitivo consideravelmente diverso se consolide. Nele, o agronegócio do Brasil terá que lidar com uma agenda cada vez mais complexa para legitimar-se perante ao mundo. Já não bastará demonstrar que nossos agricultores são mais eficientes que os de outros países. Será necessário ganhar o debate imposto por substitutos envoltos em uma aura de vanguarda tecnológica difícil de bater.
Ou, quem sabe, será o momento de ampliar os horizontes do agronegócio brasileiro, pensando em formas criativas de complementar as vantagens que possuímos nos dias atuais com a construção de novas capacitações. Durante décadas, oscilamos entre dois discursos: o primeiro, claramente ufanista, parecia partir de uma interpretação imprecisa da carta de Pero Vaz de Caminha, enaltecendo o papel do Brasil como uma espécie de “celeiro do mundo” por natureza. A segunda visão, reflexo de uma cuidadosa observação da realidade brasileira, permitiu ao país o desenvolvimento da nossa habilidade de produzir alimentos em um ambiente desafiador. O exemplo do Cerrado talvez seja o mais ilustrativo. Ambas as interpretações, entretanto, parecem unidas por uma ideia comum, a de que o destino do Brasil é o de aproveitar as potencialidades oferecidas pelo imenso estoque de recursos naturais. Nossa competitividade, assim, dependeria do uso eficiente daquilo que já temos no interior das nossas fronteiras.
O processo de disrupção em curso tenderá a relativizar algumas dessas crenças. Seguiremos dependendo – ao menos em parte – do potencial contido em nossas fronteiras. Entretanto, fatores como o desenvolvimento de capital humano e o estabelecimento de regras do jogo condizentes com as mudanças em curso serão cada vez mais importantes. Também temos que estar atentos à reação dos consumidores ao redor do globo: nem todos aceitarão as mudanças com igual entusiasmo, e uma série de atributos vinculados ao nossos produtos são ainda pouco explorados. Sem uma reflexão profunda sobre o significado desse processo disruptivo para a construção daquilo que chamamos “agronegócio”, corremos o risco de assistir ao desmoronamento de parte das nossas atuais vantagens competitivas.