Por Bruno Varella
Produto das profundezas do “baixo clero” de Brasília – com todas as suas complexas relações com a sociedade brasileira – e da superficialidade das redes sociais, Jair Bolsonaro oferecia um lema simples para a sua administração: “vamos mudar tudo isso aí”. Passados oito meses de administração, a mudança tem ares de desconstrução. Em meio a debates frívolos e lapsos de atenção, a falta de ideias é a regra. Para piorar, cometemos o erro de assumir a existência de normalidade em uma engrenagem essencialmente disfuncional.
Vejamos o exemplo da recente controvérsia sobre as queimadas na Amazônia. Desde a vitória nas eleições presidenciais, Jair Bolsonaro fez o possível para polemizar sobre a questão. De saída, questionou o Acordo de Paris sobre Mudança do Clima. Posteriormente, criticou a legislação vigente, a fiscalização, a existência de reservas ambientais, a qualidade dos dados, as intenções dos países que se comprometeram a contribuir com a preservação da floresta e das organizações que lá trabalham. Em resumo, sugeriu que desconstruiria cada um dos pilares que sustentam a política ambiental do Brasil – diga-se de passagem, sem oferecer quaisquer políticas alternativas.
Ainda assim, é provável que a decisão de cortar o cabelo – e expor o ato em uma rede social – ao invés de dialogar com um importante representante do governo da França tenha feito mais para criar indignação sobre a situação da Amazônia do que meses de polêmicas. Nunca é demais frisar, boa parte das discussões sobre as mudanças climáticas é movida pela hipocrisia. O próprio Emmanuel Macron, lidando com persistentes protestos nas principais cidades francesas, foi obrigado a abandonar iniciativas ligadas a uma incipiente agenda de descarbonização da economia do país. Dado que a maioria dos governos não está cumprindo com o prometido, criticar o próximo é uma conveniente estratégia de desvio de atenções. Pois bem: ao optar pelo confronto aberto, Bolsonaro transforma o Brasil em uma espécie de alvo perfeito.
Talvez haja método em toda essa gritaria. Ao melhor estilo “Donald Trump”, Bolsonaro pode acreditar que o ultraje seja a melhor forma de resistir no poder. Em meio a um cansativo tiroteio, porém, corremos o risco de normalizar o anormal. Algo que chama atenção na atual controvérsia é a recorrência com que a ênfase na solidez institucional do Brasil foi utilizada como instrumento de defesa. O próprio presidente, em seus raros momentos de comedimento, utilizou tal estratégia. Sendo um governo pautado pelos projetos de “desconstrução”, entretanto, é evidente que a administração de Bolsonaro poderá criar vácuos regulatórios em uma série de dimensões da vida em sociedade. Apenas para ficar em um desafio óbvio, o que seria de um país sem dados de qualidade – ou ainda, em que o chefe de Estado questiona constantemente os dados disponíveis?
O aspecto mais trágico dessa agenda de ruído constante é a impossibilidade de refletirmos sobre estratégias para o longo prazo. Afinal, a sucessão de polêmicas nos impede de consolidar um debate mais produtivo sobre a natureza de nossas potencialidades e mazelas. Enquanto esperneamos para vencer a última polêmica nas redes sociais, talvez esqueçamos que, fundamentalmente, o sucesso de nosso agronegócio é resultado de um processo de adaptação progressiva às condições únicas do território brasileiro. Conforme diversos livros narram com riqueza de detalhes, a liderança do Brasil no setor deriva de nossa habilidade ímpar de atingir altos níveis de produtividade em um cenário tropical.
A ironia é que as mudanças climáticas abalariam esse equilíbrio nas próximas décadas, a ponto de forçar a readaptação a uma nova realidade. Nesse sentido, seria lógico encaminhar o debate utilizando perguntas como: quem pagou o custo da adaptação ao clima tropical desde os anos 1970? Como essa divisão dos custos ajuda a explicar os ganhos subsequentes dos agricultores? Quando nos guiamos por tais perguntas, sublinhamos o protagonismo do investimento público e do excepcional trabalho da Embrapa na ascensão do agronegócio brasileiro. E nas próximas décadas, quem o fará? O que ocorrerá se o Estado se demonstrar incapaz de realizar os investimentos em pesquisa que serão necessários para reestabelecer o equilíbrio entre as condições do território brasileiro e a atividade agrícola? Dependeremos exclusivamente de tecnologias geradas por empresas multinacionais privadas? Como isso afetará nosso poder de negociação com tais empresas? Ou ainda, como tal cenário moldará a distribuição dos ganhos ao longo das cadeias agroindustriais?
É possível que uma análise cuidadosa das perguntas acima nos leve à conclusão de que a liderança na agenda ambiental é uma excelente estratégia para o agronegócio brasileiro. Para continuarmos a fazer aquilo que já fazemos bem, precisamos manter o atual equilíbrio climático. Logo, preservar é fundamental. Ao mesmo tempo, a adoção de postura proativa nos daria maior poder de barganha para exigir que outros países – e a população urbana do Brasil – ajudem a pagar a conta da preservação. Não nos enganemos: boa parte da polêmica sobre a cooperação em matéria de política climática é de natureza distributiva. Em outras palavras, cada parte quer empurrar a conta para o outro lado da mesa. Se queremos a ajuda alheia, precisamos nos munir de argumentos mais sólidos. Se bem executada, a consolidação de uma agenda ambiental madura poderia fornecer ainda um sólido pilar para uma estratégia de construção da imagem do país no mercado internacional.
Para tanto, porém, precisamos refletir sobre a natureza das nossas vantagens competitivas e objetivos de longo prazo. Igualmente, deveríamos abandonar os discursos “frentistas”, evitando a criação de grupos artificiais – agronegócio contra ambientalistas, grandes contra pequenos produtores, etc. – e formando coalizões que não tenham medo da heterogeneidade de interesses e visões de mundo. Dá muito mais trabalho, mas certamente trará mais frutos que a verborragia inconsequente que parece predominar nos dias atuais.