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BRUNO VARELLA MIRANDA

EM 04/08/2021

4 MIN DE LEITURA

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O que sorvete e política teriam em comum? Se depender da Ben & Jerry’s, muito. Fundada em 1978 em Vermont (Estados Unidos), a Ben & Jerry’s produz sorvetes “premium” vendidos em diversos países do mundo – entre os quais o Brasil. Desde os primórdios, a empresa se caracteriza pelo ativismo. Seus fundadores, Ben Cohen e Jerry Greenfield, ficaram conhecidos nos Estados Unidos pelo apoio a causas progressistas, incluindo a decisão de destinar 7,5% do lucro bruto da empresa a projetos sociais.

Com o crescimento da Ben & Jerry’s, aumentou também o interesse pela marca, que seria vendida em 2000 à multinacional Unilever. Desde então, Cohen e Greenfield estão afastados da governança formal da empresa. Ainda assim, o processo de transferência da propriedade da marca não representou uma completa absorção da fabricante de sorvetes pela Unilever. Duas décadas após a venda, a Ben & Jerry’s mantém um considerável nível de independência em relação às políticas de sua controladora – algo que, na prática, significa a existência de um “conselho independente” responsável por cuidar da “integridade” da marca.

Em uma organização como a Ben & Jerry’s, cuidar da integridade da marca significa adotar uma posição clara sobre temas políticos relevantes. Por isso, a marca decidiu, em julho de 2021, que, após um período de transição, deixará de comercializar sorvetes em assentamentos de Israel localizados em território palestino.

A medida despertou a fúria do governo israelense, que mobilizou a sua rede diplomática para reverter a decisão da Ben & Jerry’s. A marca é bastante popular em Israel, com um market share de cerca de 15% e a liderança no segmento de sorvetes “premium”. Para além da polêmica causada pela decisão de uma marca tão conhecida no país, existe o temor de que tal iniciativa encoraje outras empresas a adotar políticas semelhantes.    

Outros grupos de interesse vocalizaram o seu desconforto com a decisão. De fato, ninguém sabe como a medida afetará os lucros da Ben & Jerry’s. Houve mesmo quem dissesse que a decisão da empresa afetaria as aposentadorias de milhares de pessoas nos Estados Unidos, ao reduzir o valor de ações que compõem o portfólio de diversos fundos de pensão do país.        

O futuro dirá quem ganhará e quem perderá com a decisão – supondo, é claro, que a medida será mantida. De qualquer maneira, algo que chama a atenção na iniciativa da Ben & Jerry’s é a busca por sublinhar um conjunto de valores e posições políticas. Em um contexto marcado pela polarização, a decisão de não vender sorvetes em assentamentos israelenses poderá angariar a simpatia de milhões de consumidores. Por outro lado, certamente desagradará outros tantos. Mesmo em Israel, é provável que a medida não signifique um boicote à marca. Afinal, a sociedade israelense é caracterizada pela diversidade de opiniões em relação às relações com os vizinhos.

De qualquer maneira, ao tomar uma posição, a Ben & Jerry’s reconhece dois fatos. O primeiro, de que o ato de consumo pode ir muito além dos atributos mais óbvios de um produto. A compra de um sorvete “premium”, por exemplo, pode significar a manifestação de uma opinião sobre um sério conflito político ou uma questão ambiental complexa. Em segundo lugar, a empresa demonstra compreender que o seu esforço de diferenciação tem limites. Por isso, “dobra a aposta” e molda o seu sistema de distribuição de modo a agradar públicos que, acredita, serão mais fiéis à marca.       

O exemplo da Ben & Jerry’s é ainda uma exceção. Como toda exceção em um mercado competitivo, porém, pode virar a regra caso dê resultado. Especialmente em segmentos “premium”, é provável que tal tipo de manifestação política ganhe importância crescente. Em sociedades cujos indivíduos buscam construir suas identidades por meio de decisões de consumo, a estratégia é um passo natural. Se não podem atender a todos, as empresas escolherão a quem atender e passarão a oferecer uma quantidade crescente de atributos intangíveis em seus produtos.

Os enormes custos de governança ligados ao estabelecimento e manutenção de cadeias de suprimento complexas impõem um óbvio limite a tais estratégias. Evidentemente, estratégias de diferenciação baseadas em atributos intangíveis prosperarão apenas se amparadas em sistemas eficientes de coleta e distribuição de informação. Ainda assim, potências agrícolas como o Brasil devem estar atentas às implicações de tais movimentos. A depender de nossas políticas – e da nossa capacidade de comunicar nossas práticas e valores –, seremos parte ou do “problema” ou da “solução”.

Infelizmente, a impressão é a de que, embora tenhamos muito a oferecer como “solução”, seguimos presos a polêmicas estéreis e concepções ultrapassadas de desenvolvimento econômico que exacerbam os nossos “problemas”. A carta aberta publicada recentemente por algumas das principais redes de supermercado da Europa exigindo ações mais ambiciosas do governo brasileiro no combate ao desmatamento comprovam tal estado de ânimo.

Nunca é tarde para refletir e pressionar por uma correção de rota. Já passou da hora de começarmos a fazer a lição de casa.

BRUNO VARELLA MIRANDA

Professor Assistente do Insper e Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Missouri

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