A tragédia de Brumadinho nos obriga a repensar conceitos e preconceitos acumulados. Após anos de fortalecimento de um discurso que culpa o Estado por todos os males do Brasil – e concede ao “mercado” a habilidade de sanar todas as nossas mazelas –, a realidade mais uma vez se mostra complexa: estamos diante da segunda catástrofe ambiental em apenas três anos envolvendo uma das empresas símbolo da economia brasileira. Nos últimos 36 meses, a Vale cruzou um árduo percurso que incluiu o desastre de Mariana, a chegada de um novo presidente e o processo de entrada no chamado “Novo Mercado”. O que parecia uma história de êxito e correção de problemas do passado, amplificada por uma enorme valorização das ações em um curto período de tempo, hoje afunda em um lamaçal tóxico.
As tristes notícias de Brumadinho deveriam servir de alerta para todos aqueles que consideram qualquer tipo de regulação um “entrave ao desenvolvimento do Brasil”. Trata-se de uma lógica que inspira iniciativas como a subordinação da agenda do ministério do Meio Ambiente aos interesses de agentes que não necessariamente priorizarão os objetivos da pasta. Quando bem administrada, a diversidade de pontos de vista é uma fortaleza, e não uma fraqueza. Da mesma maneira, a tragédia mineira demonstra a leviandade daqueles que argumentam que bastaria uma auto-declaração de uma empresa para garantir o cumprimento de uma determinada regra ambiental. Uma vez mais, trata-se de um raciocínio que influencia a atual lógica de estabelecimento das regras do jogo em nosso país.
Obviamente, o Estado está longe da perfeição. Entretanto, abandonemos o discurso que concede à iniciativa privada uma espécie de virtuosismo inabalável. Qualquer organização complexa é imperfeita e sujeita aos vícios e virtudes dos seres humanos. Nesse sentido, a força de uma sociedade deriva da capacidade de estabelecer freios e contrapesos efetivos. Embora a busca pela maximização do lucro forneça um impulso fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade, tal corrida não deve ocorrer em meio a um vácuo institucional. É no nível político que qualquer grupo de pessoas estabelece metas de longo prazo e negocia regras que permitem a convivência de interesses e objetivos conflitantes. De fato, mesmo o tal “mercado” é, acima de tudo, uma construção política. Fosse a eficiência o único critério a influenciar a ação econômica, as centenas de bilhões de reais gastos em campanhas políticas e de convencimento do público teriam outro destino. Se distintas sensibilidades e prioridades não são representadas, corremos o risco de privilegiar soluções apressadas e míopes.
Não é porque determinadas leis “não pegam” no Brasil que devem ser abandonadas. Igualmente, a dificuldade em fazer valer as regras do jogo – ou para entender como o jogo funciona – não deveria servir de desculpa para a remoção de supostos entraves. Quando se argumenta que o desenvolvimento de uma sociedade depende da existência de freios e contrapesos, cabe sublinhar que evitar o desmonte de parte do arcabouço institucional que permitiria a fiscalização recíproca é tão importante quanto impedir a captura do todo por uma pequena parcela dos interesses. Infelizmente, somos reféns de uma lógica em que a limitação não se dá pela ausência de leis, mas pela criação de “bolhas de privilegiados”, para os quais a aplicação da regulação se dá conforme a conveniência no curto prazo.
Merece menção honrosa uma parte considerável das elites do país – tanto intelectuais quanto políticas –, que vêm canalizando uma frustração justificável na adoção de um discurso simplista para lidar com vários dos desafios nacionais. Saímos das “mentiras econômicas” de Dilma Rousseff para um governo que cultiva uma série de “argumentos pseudo-científicos” como diretrizes para a formulação de políticas públicas. Embora seja reflexo do abandono institucional do passado, Brumadinho nos alerta para uma realidade que poderá bater a nossa porta uma e outra vez no futuro. Enquanto isso, fingimos que não é com a gente, esperando o dia em que o Paulo Guedes entregará as reformas prometidas e, se possível, entregará a conta para outros grupos que não os nossos.
A tragédia de Brumadinho reflete um fracasso em vários níveis. Falhou o Estado, incapaz de fiscalizar por incompetência ou corrupção. Errou a iniciativa privada, inebriada por um discurso de otimismo infálivel em sua habilidade de solucionar problemas, e que tende a fugir de qualquer crítica construtiva. Acima de tudo, fracassamos todos os brasileiros, que nos deixamos levar pelo discurso de desmoralização do tecido institucional do país nos últimos anos sem percebermos que, no fundo, a difícil situação deriva de escolhas feitas por nós mesmos. Infelizmente, a preferência nacional é pela identificação de defeitos no quintal alheio – talvez para ajudar a omitir as nossas próprias mazelas. E assim, de proteção de privilégio em proteção de privilégio, caminhamos rumo a mais tragédias.