Análises sobre o futuro da agricultura podem criar percepções aparentemente contraditórias. Por um lado, são inúmeros os textos cuja inspiração explícita é “o desafio de alimentar 10 bilhões de pessoas em 2050” – algo que nos levaria a supor que não faltará mercado para produtos agrícolas nas próximas décadas. No entanto, são igualmente numerosos os artigos que esmiúçam os desafios enfrentados por agricultores nos mais diversos países. Nesse caso, a impressão é a de que a agricultura é uma atividade econômica insustentável para a maioria dos produtores rurais, e particularmente para as cerca de 500 milhões de pequenas propriedades ao redor do mundo.
Não há nada de contraditório nesses alertas que nos fazem temer tanto pela possível falta de oferta quanto pelo futuro dos potenciais ofertantes. Comecemos pelo primeiro desafio. Sem uma transformação capaz de aumentar a produtividade no mundo em desenvolvimento e mitigar os efeitos deletérios da mudança climática, será difícil alimentar 10 bilhões de pessoas em 2050. Isso não significa, porém, que estejamos diante de um objetivo impossível. É aí que o segundo alerta adquire peso. Mesmo que sejamos capazes de expandir de forma significativa a produção de alimentos nas próximas décadas, é possível que a grande maioria dessas 500 milhões de pequenas propriedades fiquem pelo caminho. Ao menos essa é a tendência caso não reflitamos de forma crítica sobre a atual lógica de organização das cadeias agroindustriais.
Em um planeta que avança em ritmo acelerado a uma realidade pós-industrial, um encolhimento da população rural seria uma má notícia. Para além de preocupações óbvias como o desemprego, o desaparecimento de milhões de pequenas propriedades significaria o aprofundamento de outros desafios contemporâneos como a administração dos fluxos migratórios ou a urbanização acelerada em países com reduzida capacidade de fornecer infraestrutura básica aos seus cidadãos. Nesse sentido, alimentar 10 bilhões de pessoas em 2050 deveria significar não apenas garantir uma oferta adequada de alimentos, como também estabelecer políticas que permitam a participação de milhões de produtores rurais nesse processo.
Para isso, precisamos repensar o papel das ações coletivas na concretização de objetivos na agricultura. O século XX ficará marcado como a era da construção e fortalecimento das cooperativas agrícolas, com sua clara intenção de oferecer um contrapeso para o poder de barganha de outros segmentos da cadeia agroindustrial. Quando bem desenhada, a estratégia funcionou. Nas próximas décadas, porém, tal impulso será insuficiente. No século XXI, teremos que avançar na construção de parcerias entre agentes com interesses potencialmente antagônicos, levando rivais do passado a cooperarem. Caso contrário, nos resignaremos a conviver com uma “agricultura sem agricultores”.
Fundamentalmente, precisamos repensar o papel dos Estados e das empresas privadas na organização das cadeias agroindustriais. Desde os anos 1990, é crescente o número de analistas que insistem na ideia de que uma espécie de “divisão do trabalho” bastaria para trazer desenvolvimento: por um lado, caberia ao Estado fornecer uma espécie de plataforma para que as empresas conquistem mercados. Por outro lado, caberia a tais empresas maximizar o retorno aos acionistas. Sob tal lógica, o critério a nortear as ações seria a busca por eficiência. No caso das empresas privadas, tal princípio pode soar óbvio. Lógica semelhante, porém, tem permeado também o discurso estatal. Assim, os mais “capazes” deveriam prevalecer, e qualquer ajuda aos “incapazes” de acompanhar as transformações econômicas e sociais significaria um desperdício de recursos escassos. Décadas de críticas às políticas direcionadas à agricultura familiar no Brasil evidenciam tal visão.
No entanto, a ênfase exagerada na eficiência obscurece outros aspectos fundamentais para a resiliência de sistemas econômicos no longo prazo, como a manutenção da capacidade de competição de um grupo consistente de agentes. Justamente por seu imediatismo, essa verdadeira obsessão com a eficiência acaba desconsiderando os efeitos dinâmicos da acumulação dos ganhos em um determinado período. Muito se fala sobre a importância do fornecimento de incentivos condizentes com a lógica de livre mercado para a promoção de uma “revolução de eficiência” nos países em desenvolvimento. A realidade é que, para a maioria de pequenos agricultores ao redor do globo, faria pouco sentido estimulá-los a uma integração acelerada ao mercado, tamanha a distância que os separa dos líderes. Sem uma mudança mais profunda de paradigma, estaríamos condenando milhões de agricultores ao fracasso.
Por isso, a construção e o fortalecimento de comunidades rurais dotadas de vitalidade e dinamismo – e, portanto, capazes de oferecer perspectivas de desenvolvimento pessoal aos seus habitantes – deverá ser um objetivo estratégico compartilhado pelos mais diversos grupos da sociedade. Precisamos reduzir as assimetrias entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. O mesmo vale para as assimetrias entre grupos de produtores com maior acesso aos recursos e habilidades necessários para a condução dos negócios no século XXI e aqueles desprovidos de tais ferramentas. Se existe alguma intenção de permitir a participação dos pequenos produtores no desafio de alimentarmos 10 bilhões de humanos em 2050, as empresas terão que estabelecer objetivos mais ambiciosos de responsabilidade social corporativa, tornando-os valores centrais na condução dos negócios. Em outras palavras, deverão transformá-los em objetivos a serem mantidos mesmo que isso signifique uma redução dos lucros no curto prazo. Aos governos, será necessário aprofundar os programas de capacitação e transferência de tecnologia – além, é claro, da disponibilização de recursos financeiros – mesmo a potenciais concorrentes.
No terreno das promessas, algum movimento tem ocorrido nos últimos anos. Compromissos tímidos também têm sido feitos. O estabelecimento de um plano estratégico consistente capaz de preparar a agricultura global para os desafios do século XXI, porém, continua pendente. Nossa habilidade de lidar com tal agenda ajudará a determinar de maneira decisiva quão suavemente atravessaremos os percalços que fatalmente emergirão nas próximas décadas.