A recente polêmica sobre o projeto que estabelece o autocontrole da produção agrícola (PL 1.293/2021) revela o estado de desconfiança crônica que impera em nossa sociedade. Se acompanhada de um redirecionamento da ação do Estado, a transferência de uma tarefa de fiscalização ao setor produtivo não deveria significar, per se, uma má notícia. Inúmeros estudos acadêmicos mostram que a efetividade de um sistema de monitoramento pode aumentar quando diversas organizações dividem a tarefa.
Na verdade, conceder ao Estado o monopólio das atividades de monitoramento não garante uma adequada realização da tarefa. Afinal, órgãos reguladores podem ser “capturados” por grupos de interesse. Até aí, nenhuma novidade: desde os tempos da Grécia Antiga, filósofos discutem: se vigilantes são necessários em uma sociedade, “quem vigia os vigilantes?”. Em outras palavras, se a sociedade transfere a Fulano a responsabilidade por monitorar uma tarefa desempenhada por Sicrano, quem garante que Fulano não agirá de acordo com o seu auto interesse?
Dilemas semelhantes ocorreriam se transferirmos as prerrogativas de monitoramento e fiscalização exclusivamente à iniciativa privada. Embora possamos argumentar que os acionistas de uma empresa privada são os maiores interessados em preservar o valor de sua marca, nada assegura que o gerente assalariado responsável pelo monitoramento também o seja. Sem o estabelecimento de uma estrutura de incentivos adequada, é possível que esse gerente prefira reduzir o nível de esforço dedicado à tarefa.
Tampouco podemos excluir a hipótese de que os acionistas sejam incapazes de enxergar a relação entre o monitoramento de seus produtos e o valor da marca. Os inúmeros escândalos na indústria de alimentos nos mostram que, para os acionistas de algumas empresas, a trapaça é um caminho legítimo. Ou, quem sabe, para muitos os custos de estabelecimento de uma estrutura de monitoramento efetiva são proibitivos.
Poderíamos seguir analisando o papel de diversos outros grupos de interesse. Em qualquer caso, a conclusão seria semelhante: sozinho, vigilante algum nos garante um monitoramento perfeito. Nem mesmo os consumidores, principais interessados na segurança dos alimentos, dariam conta do recado. O que faria uma pessoa investir tempo e recursos financeiros para monitorar a qualidade de um produto se soubesse que outros milhões de cidadãos possuem o mesmo dever? Não terminaríamos em um cenário dominado pelo “efeito carona”?
Por isso, a história sugere a divisão da tarefa entre vários vigilantes. Séculos de especulação teórica e experiências práticas nos mostram que sistemas de monitoramento efetivos dependem do estabelecimento de um sistema de “freios e contrapesos”. Nele, os muitos vigilantes seriam responsáveis por apontar – e eventualmente punir – os desvios de conduta alheios. Todos os vigilantes seriam, assim, fiadores da estabilidade do sistema.
Poderíamos conceber um arranjo semelhante, contando com a participação ativa do Estado, das empresas, e de outros grupos de interesse como as organizações não governamentais dedicadas a temas como meio ambiente e alimentação. Entretanto, a existência de confiança é um requisito básico para que tais sistemas sejam construídos. Aí reside o nosso principal desafio. Anos de retórica virulenta têm reduzido a níveis mínimos a nossa capacidade em encontrar pontos de convergência com aqueles que pensam diferente. Desconfiamos de quem não defende as mesmas soluções e, por isso, tendemos a privilegiar posições “maximalistas”.
Se não encontrarmos um remédio para tal desconfiança crônica, será impossível refinarmos a governança de problemas complexos como o tratado pela PL 1.293/2021.