Por Bruno Varella
Há algo difícil de entender no atual desentendimento entre Jair Bolsonaro e a maioria absoluta da classe política brasileira. Os fatos são de conhecimento público. Contrário às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), Bolsonaro defende o abrandamento das medidas de isolamento adotadas por prefeitos e governadores ao redor do Brasil. Segundo o presidente brasileiro, as precauções são exageradas devido aos supostos baixos riscos da covid-19 – um “resfriadinho”, nas palavras de Bolsonaro. Ainda segundo o presidente, o exagero causaria uma redução desmedida da atividade econômica, levando o país a uma grave recessão. Seria mais uma crise em uma sociedade esgotada após anos de crises.
O que é difícil de entender? O cálculo político feito por Bolsonaro. Dizem que o presidente teme que os efeitos de uma recessão econômica inviabilizariam a sua reeleição. É provável. Entretanto, seria improvável que a sua administração sobrevivesse a um colapso do sistema de saúde derivado de uma propagação descontrolada da covid-19. Conforme o economista indiano Amartya Sen argumenta, democracias são pouco tolerantes a mortes causadas pela negligência dos seus governantes. Sen estudou a fome coletiva ao redor do globo, mas o argumento é útil para prevermos as consequências de uma crise de saúde pública em um país como o Brasil. Qualquer presidente afetado por uma grave crise em um regime democrático corre sério risco de perder o emprego.
Se Bolsonaro acha que poderia administrar melhor o peso de milhares de mortes do que as consequências de uma recessão, há variáveis implícitas em seu cálculo que precisam ser reveladas. Nos últimos dias, muito se fala sobre uma possível transferência da responsabilidade de uma crise a prefeitos e governadores. Em outras palavras, Bolsonaro estaria se preparando para, em um futuro, dizer algo do tipo “não me culpem por essa crise econômica”. Embora faça sentido, o raciocínio tende a minimizar os efeitos de um aumento exponencial dos casos da covid-19 sobre a aprovação do presidente no curto prazo. Ao defender que os brasileiros voltem à “vida normal”, Bolsonaro chama para si a responsabilidade para as consequências da retomada da rotina. Seria preciso muita fé no talento do “mito” de conduzir a nação para perdoar um possível caso grave de covid-19 na família. Tampouco é óbvia a retomada do crescimento econômico apenas com o fim do isolamento. Longe disso, a concretização dos desejos de Bolsonaro – e a incerteza resultante do aumento do número de mortes – dificultaria ainda mais a retomada quando tudo passar.
De fato, surpreende a rapidez com que Bolsonaro abraçou o discurso da retomada da rotina, assumindo que mortes ocorrerão. Afinal, o comportamento contradiz o próprio papel do bolsonarismo na coalizão que venceu as últimas eleições presidenciais. Nas palavras de Paulo Guedes, o triunfo eleitoral teria representado o encontro “entre a ordem e o progresso”. Pois bem, uma crise de saúde pública oferece a ocasião perfeita para que um presidente demonstre a capacidade de organizar esforços. Se Bolsonaro não se sente estimulado a assumir a liderança agora, é talvez porque a sua ideia de “ordem” se limita a uma interpretação pouco inspirada do termo, demasiado presa aos problemas de segurança pública. Não por acaso, o presidente sugere que arriscar a vida de milhares de brasileiros é algo justificável diante do potencial aumento da criminalidade.
Ao fixar o dilema de forma tão simplista, Bolsonaro acaba desvalorizando o seu próprio papel nas engrenagens da governança do país. Em um contexto de grave crise, cabe à liderança ajudar a mitigar eventuais riscos e reduzir a incerteza na medida do possível. O atual presidente, porém, não parece preocupado nem mesmo em avaliar seriamente as possibilidades de ação. Não é a primeira vez. De fato, quando somados à dificuldade para tomar a iniciativa em questões relevantes, os vícios retóricos do bolsonarismo são preocupantes. A omissão do presidente reforça um padrão observado desde o início do seu governo, qual seja: o desinteresse pela dura rotina da gestão do Brasil. Inexiste projeto próprio, para além das demandas de grupos de interesse específicos ou de lemas moldados para causar impacto nas redes sociais. Nesse sentido, Bolsonaro encarna a busca pelo poder como fim em si mesmo.
É difícil entender como tal padrão de comportamento se encaixaria no longo prazo na lógica de funcionamento de um Estado democrático de direito. Bolsonaro é um caso digno de nota por aliar a descrença nos especialistas a uma profunda falta de imaginação para a promoção de quaisquer soluções para os problemas do Brasil. Para desafios não tão urgentes – ou “invisíveis” em um Brasil acostumado a ignorar muitas de suas mazelas – a abordagem pode funcionar. Quando a crise bate à porta, porém, somente o desejo de que o caso não é tão grave assim costuma ser insuficiente.