O termo “novo normal” tem sido utilizado com frequência para descrever o mundo que emergirá da pandemia de Covid-19. Trata-se de uma expressão que, embora inspirada por uma ambição de abarcar um sem número de transformações, falha ao fazê-lo. Afinal, o “normal” nunca é estável. São tantas as possíveis fontes de perturbação do “normal” – ciclos econômicos, realinhamentos geopolíticos, mudanças ambientais, emergência de novas preferências – que a transformação não chega a ser uma exceção, mas sim a regra.
Isso não significa que qualquer mudança derive dos mesmos mecanismos ou gere consequências de magnitude idêntica. Eventos como a pandemia de Covid-19 possuem um alto potencial disruptivo. Em outras palavras, podem afetar uma série de aspectos de nossa vida em um curto período. Ainda assim, o principal desafio diante de qualquer analista é separar mudanças circunstanciais daquelas transformações de longo prazo. É provável que muito do que imaginamos sobre o mundo pós-Covid se mostre impreciso. Afinal, tendemos a imaginar eventuais mudanças tomando como base a esperança de que outras tantas variáveis seguirão constantes. Podemos formular hipóteses sobre a importância crescente do home office nos próximos anos, mas provavelmente o faremos assumindo o efeito de apenas uma variável – a duração da pandemia – sobre o comportamento. Não é isso o que ocorre no mundo real, entretanto. Ao afetar todas as variáveis ligadas à vida em sociedade, a Covid-19 acabará por revelar novos caminhos e explicitar atuais limitações de maneiras surpreendentes.
Por isso mesmo, nossa capacidade de lidar com a atual crise dependerá mais das perguntas que formularemos nos próximos meses do que de quaisquer conclusões apressadas. A vantagem da dúvida é a sua abertura à incorporação de novas variáveis e a flexibilidade para o estabelecimento de cenários alternativos. A pressa pela determinação de um desfecho – algo tão comum no mundo dinâmico do século XXI – acaba resultando em um empobrecimento da análise, algo preocupante em momentos como o atual.
Isso posto, são diversas as dúvidas que rondam o cafeicultor. Questão importante diz respeito ao impacto da Covid-19 sobre os hábitos de consumo de café ao redor do mundo. Mais especificamente de que maneira a pandemia influenciará a cultura do café? Estaremos diante de um momento disruptivo, com a perda de fôlego de algumas tendências e o nascimento de outras?
Por exemplo, a Starbucks nasceu, inspirou concorrentes e se reinventou explorando a ideia de “Terceiro Lugar”. Mais especificamente, a rede almeja ocupar um espaço complementar ao do lar e do trabalho na rotina de seus consumidores. Com a Covid-19, e a progressiva redefinição do papel de cada um desses lugares na vida das pessoas, poderá a empresa manter a estratégia? Será capaz de implementar mudanças que permitam o consumo de seus cafés sem que isso implique um esvaziamento dos atributos ligados à marca? Diga-se de passagem, a mesma pergunta vale para todas as grandes empresas do segmento.
Se a situação é complexa para as grandes redes de cafeterias, certamente não se compara à situação dramática enfrentada por pequenos negócios ao redor do mundo. Desde o início do século XXI, inúmeros artigos buscam refletir sobre as possíveis consequências do florescimento de novos nichos do mercado, impulsionados pelo interesse em um estilo de consumo conectado com atributos éticos e sustentáveis. Muito se escreveu sobre o renascimento dos centros urbanos em países como os Estados Unidos, e os impactos positivos dessa transformação para a vitalidade das comunidades e a afirmação de novos hábitos de consumo. Dentro dessa nova realidade, o café ocupa um papel central no imaginário de milhões de consumidores. Embora fizesse parte de um nicho, parecia evidente que tais aspirações e práticas poderiam influenciar – e, de fato, influenciavam – o comportamento de grandes empresas.
Veio a Covid-19, entretanto, e com ela o fechamento em massa de pequenos negócios em todo o mundo. Imagens de distintas partes do globo mostram um cenário de desolação e placas de “aluga-se”. Quais serão as consequências desse encolhimento para a determinação das estratégias das grandes empresas no futuro? Deixando de lado aspectos puramente econômicos como uma possível concentração e o consequente aumento do poder de barganha das empresas sobreviventes, faz sentido imaginar que a crise anunciada do modelo de pequena cafeteria implicará também uma perda para a capacidade criativa do setor. Cada empreendedor que fecha as portas da sua empresa leva consigo não apenas investimentos, mas também ideias. A saída de cena de tantas pessoas com energia e projetos interessantes fatalmente afetará as possibilidades de consolidação de novas estratégias de criação e apropriação de valor ao longo de toda a cadeia do produto.
Sendo arriscado frequentar uma cafeteria, resta saber como tais restrições influenciarão as gôndolas dos supermercados e as lojas especializadas. Afinal, a Covid-19 afeta não apenas o consumo em uma cafeteria como também ações de marketing destinadas a apresentar novos produtos aos consumidores. Quais as potencialidades e limites de estratégias baseadas em plataformas on-line, como as redes sociais? De que maneira essa maior distância em relação ao consumidor pode estimular o consumo de alternativas que seriam vistas como “bizarras” por aqueles acostumados a uma experiência tradicional? Será a Covid-19 e o crescimento do consumo doméstico um empurrão para uma nova rodada de inovações no setor?
São mudanças que nos manterão ocupados pelos próximos anos. Seja por meio da análise, do desenho de políticas ou da formulação de estratégias de negócio, deveremos dar respostas a essas e muitas outras questões. Mais do que isso, precisaremos manter certa desconfiança ao nos depararmos com qualquer resposta simples: a compreensão do “novo normal” – ou de todos os “normais” – dependerá principalmente da qualidade das perguntas que formularemos e da nossa tolerância a revisá-las constantemente.