O fulcro das contrariedades se concentrou no consignado diagnóstico de inviabilidade econômica de parcela dos cafeicultores de arábica. Ao se contemplarem as entrelinhas do estudo e os posicionamentos contrários desencadeados, infere-se que as divergências se situam tanto na formas de apresentação das ideias como no seu conteúdo propriamente dito.
Os fenômenos sociais exigem em sua interpretação um olhar de processo, ou como preferem alguns sociólogos, de fluidez. A adoção de padrões rígidos conduz à geração de conclusões míopes no que diz respeito à capacidade de decifrar a realidade. Uma visão dinâmica, ao contrário, permite balizar o campo dos debates em que se movimentam as idéias.
A construção de uma tipologia econômica dos cafeicultores bastante simplificada resulta em três tipos fundamentais: a) cafeicultores situados na franja de exclusão; b) cafeicultores em fase de transição e c) cafeicultores plenamente consolidados2. Aparentemente, foi a inabilidade do grupo responsável pela produção do relatório em caracterizar adequadamente as premissas da tipologia adotada o estopim para o irrompimento das contrariedades.
Carecendo da construção de apropriada tipologia e com eivos estáticos no esforço analítico, o relatório se desenrola como se a eliminação de cafeicultores do segmento em que atuam fosse uma decorrência "natural" do deus mercado. Tal vício se transmite para o capítulo de formulação das políticas setoriais, pois as ações se concentram no apoio aos cafeicultores em transição e consolidados. Disso deduz-se que a eliminação daqueles situados na franja de exclusão dentro do arcabouço como sendo resultado de uma necessária "higienização" do segmento!
Ao não relacionar ações mitigadoras do impacto social da exclusão econômica, o relatório torna-se um documento de limitada aplicabilidade política. Os cafeicultores situados na franja de exclusão demandam ações públicas que propiciem sua reconversão produtiva, capazes de mantê-los dignamente enquanto produtores rurais, empregando inclusive conceitos como a multifuncionalidade da agricultura - preservação da paisagem e produção de água, por exemplo, que legitimem a concessão de vantagens econômicas e outros benefícios aos produtores nessa categoria enquadrados.
Após a divulgação dos resultados do Censo Agropecuário 2006 que ressaltou o incremento da concentração das terras no País, aquilo que menos se deseja é que na cafeicultura também se localizem fatores de fortalecimento dessa terrível tendência história do agro brasileiro.
O colapso econômico mundial de setembro de 2008 fez a todos relembrar que para os fenômenos sociais não existem certezas. Todavia, as análises do mercado de café têm valorizado, excessivamente, a posição dos estoques do produto enquanto elemento determinante na imutabilidade das cotações. Tal certeza é a próxima expectativa que será investigada visando construir cenário mais plausível para as cotações a médio prazo (quarto trimestre de 2009 e primeiro de 2010).
Perder de vista a sabedoria do decano dos economistas brasileiros, Eugênio Gudin, quando afirmou "café é câmbio", consiste no primeiro esquecimento imperdoável. A debilidade do dólar estadunidense que reflete as fragilidades daquela economia associada ao desbragado otimismo no que diz respeito ao porvir do brasileiro engendrará trajetória inapelável de valorização do real, fenômeno que já vem demonstrando seu pleno vigor nos últimos meses. Num deslocamento inversamente proporcional, a valorização do real incrementa as cotações em dólar do café e os movimentos se anulam. Independentemente da posição consolidada dos estoques, não se pode ser otimista com as cotações futuras para o produto mediante a flutuação cambial.
Outro condicionador do ambiente para a formação dos preços do café localiza-se nos processos especulativos atuantes no mercado do petróleo. Ainda que os estados nacionais busquem descarbonizar a matriz energética, o petróleo permanece sendo a "rainha" das commodities. Tal assertiva pode ser confirmada cotejando-se as curvas de preços de ambas as matérias primas em que se pode constatar a unidirecionalidade das oscilações (Figura 1).
Figura 1. Trajetória das cotações do petróleo (tipo Brent) e do café arábica (Nova Iorque em segunda posição), jan./07 a set./09
Fonte: IPEADATA e CaféPoint
A débil recuperação da economia mundial depende visceralmente da manutenção em patamar "aceitável" das cotações do petróleo. Nos Estados Unidos, por exemplo, para cada US$ 1,00 de incremento nas cotações do barril de petróleo, o país desembolsa US$ 4 bilhões a mais para atender sua demanda pelo produto. Tal exemplo se aplica a outras economias centrais como a Alemanha e outras nações da EU, o Japão e a Coréia e até mesmo a China.
Sob a vigência de cotações aceitáveis para o petróleo, tem-se nesse fenômeno outro modulador para a evolução futura das cotações do café. Em essência o que se enfatiza nessa abordagem é a condição de relatividade dos preços uns para com outros. Nenhum dos preços forma-se em absoluto, mas ao contrário, são mutuamente dependentes e inter-relacionados, especialmente, dentre aquelas matérias primas homogêneas.
Sem pretender esgotar o assunto traz-se a cena o quesito demanda agregada3. Uma monumental parte da riqueza foi fulminada pela crise econômica, empobrecendo acentuadamente as empresas e famílias, induzindo aos governos nacionais a desbaratarem montanhas de dinheiro de fato na atenuação dos possíveis impactos do colapso. Traduzindo o palavreado, os agentes econômicos se tornaram mais avarentos. Assim, crer que seja possível uma fácil aceitação por parte dos mercados de cotações em elevação para matérias primas básicas é uma hipótese quase patética. O café não possui nenhuma qualidade ímpar que faça desse produto uma exceção.
Há ainda um assunto que merece apreciação. Afinal, de que lado se deve posicionar na temática da rotulagem do café torrado e torrado e moído?
Os materialistas históricos possuíam um lema totalmente aplicado ao assunto: a união operário-camponesa, campo-cidade, na condução da revolução socialista. Embora a manifestação do diretor executivo da ABIC possa ter induzido na intensificação da polêmica que o tema contempla, as lideranças dos cafeicultores equivocam-se no alvo de sua mira. Os esforços estariam mais bem empregados caso estivessem municiando os órgãos de defesa do consumidor como os PROCONS, IDEC e Fundação Pró-teste. A solução para o falso dilema estabelecido - rotular ou não, somente encontrará desfecho aceitável mediante a aliança campo-cidade.
Se ainda restar dúvida quanto ao anacronismo da postura da indústria, basta pontuar a sinuca em que os torrefadores se auto-impuseram. Ao mobilizarem todos os lobbies de influência pró-norma de regulamentação da identidade do café torrado e do torrado e moído, sacramentando a lambujem de até 5% de umidade no produto, negam-se em prover de informação aquele que aparece como rei em seus materiais publicitários: "O CONSUMIDOR"! Arcaísmos; imperícia; relutância frente às novas exigências de transparência e confiança que crescentemente devem pautar as transações comerciais pós-crise econômica. Os torrefadores carecem, sim, de um novo estatuto que os resgatem desse viés oportunista.
O autor agradece os comentários e sugestões efetuadas pela pesquisadora do IEA Marina Brasil Rocha.
1 Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Secretaria de Produção e Agroenergia. Agosto/2009. 23p.
2 A tipologia evidentemente se vincula ao perfil das políticas públicas exigidas para cada classe específica. Para os cafeicultores situados na franja de exclusão são necessários os denominados programas de reconversão produtiva. Para aqueles em processo de transição, mas ainda portadores de condições objetivas de se firmar na cafeicultura, as ações demandadas são aquelas capazes de introduzir avanços tecnológicos de cunho agronômico e outras inovações correlatas; que aprimorem os mecanismos utilizados na comercialização e promovam saltos na qualidade do produto. Por fim, para os cafeicultores consolidados a exigência é mais localizada e que incrementem a competitividade já alcançada como, por exemplo, a facilitação do seguro; o apoio na contratação de hedge e de fortalecimento das empresas coletivas de apoio à produção, comercialização e agregação de valor.
3 Definida como somatório do consumo privado, investimento, despesas governamentais e saldo comercial menos a diferença entre exportações e importações.