A escassez de precipitações em 2014 que vinha assolando o Sudeste e parte do Centro-Oeste do país é, aparentemente, o fenômeno climático mais estremo que a atual geração de agricultores teve a oportunidade de vivenciar. A dimensão de perdas econômicas associadas a esse fenômeno tem variações, conforme a natureza do cultivo (anuais, semi-perens e perenes), mas a antecipação do encerramento da safra de cana de açúcar em São Paulo e o baixo rendimento no esmagamento, por exemplo, comprovam a gravidade do quadro estabelecido nos cinturões produtivos.
Numa análise expedita, poder-se-ia crer que os irrigantes formariam a parcela de produtores rurais que se manteve relativamente imune a anomalia climática, pois, graças ao investimento na tecnologia, teriam a capacidade de substituir a natureza no provimento de umidade ao solo cultivado, garantindo assim a produção esperada. Todavia, a apreciação da realidade mostra-se possuidora de muito maior complexidade.
Em outubro passado realizou-se, em Monte Carmelo/MG, o IV “Simpósio sobre Mercado e Certificação de Café”. Nessa oportunidade conheceu-se engenheiro agrônomo responsável por sociedade anônima profissionalmente gerida, com demonstração pormenorizada de resultados econômicos e fluxo de caixa financeiro. Realmente um estabelecimento diferenciado da média pelo rigor com que monitora o resultado do esforço produtivo.
O apurado acompanhamento econômico não relegou para plano secundário a adoção de tecnologia de ponta no manejo agronômico dos cafezais. A média histórica de rendimento da lavoura situa-se acima dos 45sc/ha para o conjunto dos talhões (contando inclusive aqueles esqueletados sob safra zero), evidenciando que essa unidade produtiva emprega com alta eficiência os fatores produtivos.
Até esse momento a discussão rondava os determinantes da firma e a mobilização de capacidades internas em combinar fatores produtivos, resultando em processo de acumulação de capital. Mas, o século XXI exige da agricultura atendimento de novas institucionalidades em que elementos externos à firma se tornam decisivos no processo produtivo.
Assim, troca de informações com o gestor do empreendimento avançou para o esforço coletivo de gestão do recurso hídrico naquela bacia. A região de Monte Carmelo conta com associação (com mais de 200 associados, 330 pontos de captação e quinze trechos de rios/riachos supervisionados) que organiza, desde 2002, a gestão compartilhada do recurso hídrico (rios e seus afluentes e barramentos). Tal gerenciamento foi resultado da declaração, por parte do órgão ambiental estadual, de área de conflito pelo uso da água decorrente da pressão por demanda de irrigação ser superior a oferta hídrica sob padrões sustentáveis (com manutenção de vazão excedente e preservação da condição perene do recurso). Por meio da auto-regulamentarão, nos meses de julho-setembro, há alternância na captação entre os irrigantes, calculada segundo a capacidade de oferta do recurso e recalculada toda a vez que algum outro agricultor obtém regularmente a outorga para aquele curso d’água sob autogestão.
Por meio de medições de vazão no final de cada trecho se recalcula a disponibilidade para irrigação para cada propriedade/ponto de captação. Mesmo sem participação de representantes da municipalidade no órgão gestor privado há o compromisso de priorizar a captação para abastecimento urbano, demonstrando a solidariedade desses cafeicultores para mitigar as agruras causadas pela anomalia climática.
Em toda a história da associação, não houve período tão crítico como o atual. O rodízio de irrigantes teve que ser estendido para outubro em razão do atraso no retorno das precipitações. As lavouras, ainda que recebendo lâmina d’água duas vezes por semana, mostravam-se muito sentidas com indicação de prejuízo econômico bastante evidente. Mesmo assim os cafeicultores mantinham-se fiéis ao pacto estabelecido, respeitando a alternância de uso do recurso hídrico.
Os empreendedores que constroem a cafeicultura do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Cerrado, e suas organizações sociais dão prova da capacidade de organização e respeito a pactos mutuamente estabelecidos. Exprime de maneira concreta o modo de conduzir atividade com viabilidade econômica e, paralelamente, induzir o tão perseguido desenvolvimento sustentável (a vazão dos rios e riachos é mantida para abastecer os agricultores e núcleos urbanos a juzante). Ao formalizar estratégias tipo ganha-ganha, direciona seus esforços para conquistas ainda maiores, consolidando uma cafeicultura das mais dinâmicas do mundo. O retorno das chuvas não apagará da lembrança desses cafeicultores seu esforço em exibir sua excelência na gestão de recursos comuns, procedimento ainda longínquo para a quase totalidade das atividades econômicas urbanas ou rurais desse país.
O agronegócio do porvir estabelece novas institucionalidades que demandam a convergência entre os interesses micro (cafeicultores) com as prioridades macro (sociedade). O êxito da complexa autogestão dos recursos hídricos disponíveis localmente alça esses cafeicultores ao merecimento de pagamento por serviços ambientais prestados à sociedade, etapa essa ainda não reivindicada pelas suas lideranças, mas perfeitamente cabível diante da missão que a eles se delegou.
Por Celso Luis Rodrigues Vegro
Eng. Agr., Pesquisador Científico do IEa
celvegro@iea.sp.gov.br