• Goles: trato do café, que é bebida; se fosse comida sólida, diria bocados ou nacos;
• Pessimismo: escola do pensamento filosófico iniciado pelo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), concebendo que os homens podem se dedicar à filosofia sem ter de persuadirem-se de que o todo mal pode ser explicado e evitado; e
• Idiossincrasia: constituição individual, em virtude da qual cada indivíduo sofre diferentemente os efeitos da mesma causa1.
Feita essa inversão da ordem linear das coisas é preciso compreender qual a ideia que as palavras pretendem compor quando juntas. Pessimismo: basta apenas um punhado de bom senso para se afastar de expectativas promissoras do porvir, pois caso assim não fosse, como justificar os monumentais aportes governamentais, oriundos das distintas nações abatidas pelo colapso financeiro, que se apressaram em fartamente irrigar bancos privados, montadoras de veículos, corretoras de imóveis e empresas seguradoras entre outras espécies de companhias. Quer me parecer que os céus não andam lá para brigadeiro!
Qual então a razão para uma apreciação idiossincrática? Para isso recorramos aos fatos. Nas matérias jornalísticas intituladas: "Alta do café ameaça a Starbucks e Kraft Foods2" e "Alta do café pressiona empresas que apostavam na queda3", os disparatados dirigentes das duas companhias mostram-se apreensivos com a evolução do custo de aquisição do café verde e sua necessidade em remarcar preços visando preservação da saúde financeira de suas companhias. Para esses gerentes, o cenário futuro para as cotações do café, em 2009, será favorável aos produtores. Pior, tal expectativa é também partilhada pelo diretor executivo da OIC que destaca, ainda, a possibilidade de este ano manter a decantada tendência de crescimento do consumo! Ademais, o executivo enfatiza o argumento, sinalizando que a demanda ultrapassará a oferta em seis a oito milhões de sacas. Assim, a análise proposta se torna idiossincrática, pois frente à mesma situação macroeconômica existem os otimistas e deles procurarei me distanciar com os "goles de pessimismo idiossincrático".
Nessa altura compete resgatar a trajetória recente das cotações. Consultando o seu movimento nas principais bolsas em que o produto é transacionado, percebe-se que houve perda acentuadíssima em todos os mercados nos últimos 12 meses, acumulando-se queda de até 1/3 do valor do produto, como foi o caso das cotações do robusta na Bolsa de Londres e muito perto disso na paulistana BM&F-Bovespa (Tabela 1). O mais aterrador é que essa baixa acontece simultaneamente sob a intensa onda de frio que aflige o Hemisfério Norte quando, normalmente, o consumo de café se eleva.
Tabela 1 - Evolução das cotações do café nas diferentes bolsas, jan-dez/08, cotação média de Fev/09 e média das cotações, 2008 e 2009 (em US$/sc de 60 kg)
Fonte: Elaborada a partir de dados da Gazeta Mercantil4.
As baixas cotações imprimem, para o conjunto da cafeicultura brasileira, uma postura absolutamente defensiva, limitando ao mínimo a tecnologia empregada nas lavouras, contando-se os gastos com mão-de-obra e os demais serviços de manejo e colheita da lavoura. Tais estratégias, certamente, redundarão em menores produtividades e acentuação do ciclo de baixa aguardado para a corrente safra, ainda, considerando, que do ponto de vista climático, o volume de precipitações tem permitido um bom desenvolvimento das plantas e êxito no pegamento dos frutos.
Dados do Cadastro Geral de Admitidos e Demitidos (CAGED) registram que nos anos de 2007 e de 2008, o número de demissões ultrapassou o das admissões em 1.790 postos de trabalho com carteira assinada, ou seja, há um processo de desocupação no segmento5. Sem dúvida, esse é o indicativo mais robusto que a situação econômica e financeira dos cafeicultores, ao menos os empresariais, encontra-se em estágio alarmante.
Já no segmento do café, digo melhor, entre suas lideranças, há tendência atávica para a adoção de um tipo de alquimia que os permita, por todos os meios, revogar fundamentos da teoria econômica. Se existe uma unanimidade em matéria de bens de consumo é a correlação direta entre o patamar da demanda e a evolução ou variação da renda disponível, mesmo considerando produtos tipicamente inelásticos, com é o caso do café6. Porém, para essas reverentes personalidades do setor, as cotações subirão e o consumo as acompanhará.
Em artigo sob a lavra do renomado economista Jeffrey Sachs7, além da defesa de uma necessária harmonização das políticas macroeconômicas dos países centrais solapados pela crise, ele destaca o impressionante montante de renda das famílias fulminada pelo atual colapso financeiro. Em seus cálculos houve encolhimento de cerca de US$ 25 trilhões da renda familiar concentrada nos Estados Unidos, Europa e Ásia, significando redução de 60% da renda mundial disponível em um único ano! Ademais, afirma que para cada US$1,00 de queda dessa renda há um declínio no orçamento familiar disponível para o consumo de US$0,05. Assim, a realidade dos números indica que com muito menos dinheiro no bolso, a propensão para o consumo em geral será fortemente refreada, não reunindo o café nenhum atributo especial que o permita se configurar numa honrosa exceção. Diminuição tão portentosa da renda, associada à imensa escalada do desemprego, somente poderá derivar num único prognóstico, qual seja, o declínio da demanda seguida de cotações cadentes para o produto.
A onda de desemprego que grassa nas principais economias mundiais, inclusive no Brasil, assume uma característica bastante diversa no momento atual. A desocupação atinge as faixas de maior renda, ou seja, profissionais mais bem qualificados e com maior nível de instrução que formam, justamente, o rol de apreciadores de café com maior propensão a consumir a bebida.
Para alguns, o argumento de que o Japão ao longo de sua década perdida (1991-2000) foi capaz de ampliar a demanda por café e, em decorrência disso, não se devem esperar quedas acentuadas na procura pelo produto, precisa ser cuidadosamente apreciado. A evolução do consumo naquele país assumiu trajetória ascendente somente nos dois últimos anos da década, sendo que nos oito anteriores, as oscilações não permitiram a configuração de qualquer tipo de tendência, ou seja, a estagflação da economia japonesa comprimiu sim o mercado de café (Figura 1).
Figura 1 - Importação de café verde, Japão, 1991-2000.
Desde a safra 2004/05, muitos analistas do mercado de café, inclusive esse que assina este relatório, passaram a enfatizar que sob o ponto de vista dos fundamentos desse mercado, armava-se cenário para o surgimento de ciclo de alta sustentável para as cotações. De fato, tal momento foi observado entre os meses de fevereiro e março de 2005, quando as cotações se aproximaram de R$ 350,00/sc. Porém, desde então, essas mesmas cotações passaram a declinar, atingindo R$ 240,00/sc e por ali ficaram até bem pouco tempo.
Por certo que, com o agravamento do colapso financeiro, os analistas do mercado de café se tornaram mais fiéis à análise dos fundamentos que, desde 2005, porém, não tem permitido a geração de construções explicativas plausíveis para o relativo congelamento das cotações que até hoje pauta o mercado. Mas, será que se apegar aos fundamentos poderá agora se tornar um elemento verdadeiramente explicativo para as flutuações futuras desse mercado? Aquilo que em muito pouco, ou melhor, quase nada, agregava em termos de fatores explicativos do tormentoso passado passa agora a receber status de único oráculo para as convictas previsões?
Mas, verdadeiramente, o que significa o retorno aos fundamentos? Para os agentes de mercado, a safra brasileira com colheita a se iniciar em maio somará 40 milhões de sacas, com estoques de passagem acima das 35 milhões de sacas e estimativas grosseiras sobre a evolução do consumo, havendo entre as mais otimistas de crescimento em 2009 de 2,5%; moderados com crescimento positivo de 1% e os pessimistas com ausência de crescimento ou até crescimento negativo, na qual esse analista se inclui.
Estatisticamente, pode-se comprovar que as cotações mais favoráveis aos cafeicultores ocorrem entre os meses de dezembro do ano anterior e março do ano corrente, uma vez que, nessa época, ocorre a entressafra brasileira. Se assim é, pergunta-se: de onde e como, por meio da análise fundamental, explicar tamanha baixa nas cotações observada no último mês? O cenário se torna mais grave com a aproximação da colheita brasileira que encurta a cada dia o prazo para uma recuperação, ainda que apenas momentânea, das cotações. Logo alcançaremos fase em que a pressão vendedora tende a se intensificar represando o esperado incremento dos preços, senão até os empurrando para patamar ainda mais baixo. Aparentemente, a carência de crédito para exportação e a fixação de embarques em prazos mais elásticos podem ser dos elementos responsáveis por essa inusitada situação.
A gravidade do colapso financeiro exigiu que os países por ele assolados atuassem no sentido de conduzir intervenções visando estancar uma provável contaminação sistêmica para todo o restante das respectivas economias nacionais. A emissão de títulos do tesouro é a ferramenta financeira que permite o rápido levantamento dos recursos necessários para se conduzir às ações previamente planejadas. Todavia, há limites para a adoção desse mecanismo. No caso estadunidense, houve necessidade de injetar recursos em muitos ramos da economia devendo esse fato aprofundar ainda mais seu já temeroso deficit fiscal (Figura 2). A dimensão desse deficit não para de se ampliar com a contínua necessidade do governo em acrescentar novos aportes financeiros ao combalido setor privado. Em seu limite, pode-se imaginar até uma situação em que os compradores desses títulos não mais acreditem na possibilidade de o governo vir a honrá-los e, por fim, esse mecanismo vir a perder sua eficácia por contaminação da atual escassez de confiança que solapou as bases da economia moderna.
Em vista da prevalência desse quadro da Nação que mais demanda café no mundo, pode-se até esperar medidas protecionistas que restrinjam as importações ou alguma espécie de aumento dos impostos. Qualquer das iniciativas afetará o mercado de café, o que seria ainda mais desastroso para o setor e um golpe fatal para os adeptos da visão otimista para o futuro desse mercado no médio prazo.
Figura 2 - Deficit Fiscal nos Estados Unidos, 2000 a 2009.
A análise econômica convencional aponta para o ciclo de juros muito baixos, especialmente nos EUA, como a principal origem da atual deflação de ativos. Porém, há ainda um aspecto adicional que precisa ser contemplado nas análises que é o chamado "Paradoxo do Investimento". Segundo tal perspectiva, "a eficiência marginal do capital tende a diminuir com o aumento do investimento, por duas razões. Primeira: à medida que se incrementa a quantidade de instalações produtivas, diminuem os rendimentos que previsivelmente se podem obter com a posse delas. Segundo: à medida que se aumenta a pressão sobre os recursos para produzir equipamento adicional de capital, seu custo de reposição aumenta"10. Se o atual ciclo de recessão estiver parcialmente associado com essa lei keynesiana, o prazo consumido até que se reverta a conjuntura em favor do crescimento pode ser bem mais elástico do que as previsões mais pessimistas11.
Para o Brasil, maior mercado para o café verde aqui produzido, o contexto é algo diverso. A emergência e a consolidação da chamada classe C poderá manter demanda sustentável para gêneros básicos. Disso decorre a informação divulgada pela Associação Brasileira de Supermercadistas (ABRAS) de que houve crescimento 6,54% nas vendas, indicando que o item alimentos e bebidas podem exibir expansão bastante significativa, ainda que pautada pelos produtos de baixo preço e marcas próprias. Ao menos uma notícia boa.
Finalmente, encerro esta já tradicional análise do mercado de café sob um abafamento que já me furta as idéias, especialmente as boas, se por acaso, amiga leitora, até esse ponto ainda não foi capaz disso se aperceber. Suadouro como esse, no planalto Piratininga, não estou a me recordar. Porém, encerro-a satisfeito por haver conseguido persistir nessa minha mensal ladainha, assim pelo menos é no que gostaria de acreditar. Sob esse clima abro mão até de sorver um fumegante café em troca de "um copo todo embaciado pela frescura da água refulgente12".
O autor agradece ao técnico de apoio Gilberto Bernardi pela colaboração na coleta e sistematização dos dados básicos e, ainda, as sempre oportunas sugestões do prof. da FGV/SP Dr. Felix Schouchana.
1 Amiga leitora, não tome esse prolegômeno como uma espécie de subestimação de sua capacidade de interpretação. Considere ao menos o tom espirituoso com o qual procurei conduzir tais tergiversações. Assim, por ora aproveite e divirta-se.
2 Alta do café ameaça a Starbucks e Kraft Foods. Gazeta Mercantil, 18/02/2009. Caderno B9.
3 Alta do café pressiona empresas que apostavam na queda. Jornal Valor Econômico, 18/02/2009. Caderno B13.
4 Disponível em www.gazetamercantil.com.br (para assinantes).
5 O avanço da mecanização, a retomada do sistema da parceria, a escassez de braços nos diversos cinturões cafeeiros e até a solicitação dos trabalhadores para não serem registrados, visando a preservação de benefícios sociais (bolsa família e auxílio desemprego) são fatores que podem mascarar a real dimensão da problemática do emprego de força de trabalho nas lavouras cafeeiras. De qualquer modo, o sinal para o balanço admissões versus demissões é negativo e sintomático da situação econômica da cafeicultura empresarial.
6 Resultados também obtidos nas pesquisas conduzidas pelo grupo ao qual pertenço. Nela constatamos que existe correlação quase que linear entre maior renda e percentual de apreciadores de café fora do lar.
7 SACHS, Jeffrey D. Cooperação macroeconômica mundial. Jornal Valor Econômico, 27/02/2009. A17.
8 Disponível em: www.ico.org
9 GUHA, K. Plano é diminuir rombo para 3% em quatro anos. Jornal Valor Econômico, 27/02/2009. A14. (matéria republicada do Finacial Times).
10 KURIAHA, K. K. Introdução à Dinâmica Keynesiana. Biblioteca Fundo Universal de Cultura Estante de Economia., 1961. 298p.
11 Nos EUA, o colapso de 1929 atingiu seu ponto mais baixo 43 meses depois do fatídico novembro. Em realidade a economia estadunidense somente assumiu trajetória de crescimento em meados de 1939.
12 A Cidade e as Serras. Eça de Queiroz.
como o pessimismo são passíveis de objeção".
Bertrand Russell - História da Filosofia Ocidental