Por Celso Luis Rodrigues Vegro*
Os componentes adversos que intervêm na produção agropecuária impõem sazonalidades e ciclos de escassez seguidos por excedentes. Essas oscilações trazem impactos aos mercados agroalimentares na medida em que promovem substanciais variações de preços, por vezes não esperadas.
A trajetória de maturação dos mercados de alimentos, bebidas e fibras tem exibido contínuo refinamento nas especificidades das matérias primas básicas destinadas às agroindústrias de transformação. Processos de diferenciação, segmentação, rastreabilidade e saudabilidade/sanidade, entre outros, constituem-se em critérios que acompanham os produtos alimentares. Esse complexo de atribuições passa a demandar formas mais coordenadas de promoção das transações, emergindo nesse cenário os contratos.
A financeirização das transações envolvendo commodities agrícolas, ocorrida ao longo das últimas três décadas, permitiu mitigar parcialmente incertezas e assimetrias entre os agentes econômicos responsáveis pela produção, circulação, processamento e destinação final dessas mercadorias. Os derivativos financeiros seguem sendo elementos estruturantes do planejamento da produção, processamento e distribuição de agroalimentos.
Mais recentemente, protocolos aferidores da sustentabilidade dos processos produtivos, e agora evoluindo para o chamado ASG (ou ESG - ambiente, social e governança), tornaram-se coqueluche nos meios empresariais com capacidade de redirecionar as alocações de investimento e de constituição de acordos/parcerias.
Conjuntamente ou parcialmente adotados, esse rol de processos e procedimentos tem por objetivo crucial entregar maior previsibilidade para os fluxos de matérias primas estratégicas. Ainda assim, sob o escrutínio das incertezas (iniciadas pela pandemia de covid-19, seguido pelo estímulo fiscal concedidos pelos países, posterior recrudescimento inflacionário e de conflagração euro-asiática), os desenvolvimentos de normalização dos mercados agroalimentares alcançados, aparentemente, são insuficientes para produzir resultados almejados, ou seja, horizontes de previsibilidade para os negócios.
A situação atual para os fluxos globais de suprimentos, ainda que anômalo, denota significativos reposicionamentos. No caso do mercado de café, as transações com a commodity vêm, progressivamente, introduzindo atributos considerados essenciais para o bom termo dos negócios: qualidade da bebida; rastreabilidade; certificação, seguimento das boas práticas agrícolas; redução das emissões de CO2 equivalente, ESG, etc.. Todavia, após duas temporadas de frustração da safra brasileira (decorrente da incidência de distúrbios climáticos sobre os principais cinturões de lavoura cafeeira), mantendo-se a histórica escalada do consumo mundial (entre 1,5% e 2,5% a.a. – refletindo incontestavelmente a típica inelasticidade demanda da bebida ainda que sob clima de estresse econômico) houve progressivo desaparecimento dos estoques, promovendo disparada nas cotações do produto.
O suprimento global de café passa por incertezas, sendo a maior delas as mudanças climáticas. Fatores abióticos como: estiagens prolongadas, excesso de precipitações, ondas de calor ou de frio acima das médias históricas, acrescidas pelos fatores bióticos como: incidência de pragas e doenças. Ademais, muitos países produtores da commodity enfrentam dificuldades em sucessão nas propriedades rurais, não sendo o Brasil exceção nesse contexto.
As mudanças climáticas têm o potencial de desorganizar a indústria de seguros rurais. Em 2021, por exemplo, as cias seguradoras no Brasil desembolsaram mais com sinistralidades do que receberam com os prêmios de apólice1. Diante desse contexto, a escalada dos valores dos prêmios de apólice é diretriz irrevogável para a preservação do segmento essencial na manutenção do esforço produtivo rural a cada nova temporada2. Os cafeicultores, após a sequência de problemas climáticos enfrentados em 2021, despertaram para a necessidade de seguro tardiamente. Justamente quando aumenta o interesse no produto irão se deparar com elevação substancial no custo das apólices, afastando-os ainda mais desse crucial produto financeiro.
Surgem controvérsias entre os analistas e operadores do mercado de café no Brasil. A produção da atual temporada será menor que a inicialmente estimada ou os armazéns vazios e a ausência de fila para descarregamento indicam apenas que a maturação está atrasada? Fisiologistas alertavam, ainda em 2021, que o estresse sobre as lavouras, provocado pelos distúrbios climáticos, afetaria a safra em 2022, o que parece agora se confirmar. Safra de arábica menor que 40 milhões de sacas3 conforme estimativas do mercado4, pode provocar acentuada escassez global para o produto, promovendo novo rally de preços.
O cenário global é de crescente demanda com aumento da escassez de oferta. Em vários momentos da história econômica do café esse fenômeno tomou assento. Entretanto, no atual contexto há elementos que o distinguem frente a situações anteriores. Inicialmente os estoques mundiais cujas estatísticas não são transparentes, estão sem condições de suportar sequer três meses de consumo mundial, estimado em 167 milhões de sacas5 para o próximo ano cafeeiro (outubro a setembro).
A escalada dos custos logísticos, especialmente do frete marítimo e do aluguel de contêineres, tem-se constituído em novo gargalo para um satisfatório fluxo de suprimentos entre as origens e as destinações. Assoma-se ao problema logístico à crise energética, como aquela patrocinada pela escalada das cotações do petróleo de meados dos anos 70, ressuscitada em 2022 com a inclusão do gás natural, carvão e a proveniente dos reatores nucleares, fomentando patamar inflacionário que não se observava a mais de 40 anos. Portanto, trata-se de uma crise de muito maior densidade e repercussões.
A governança das cadeias de produção, por maiores que sejam as especificidades delas, não resiste a choques dessa magnitude. No Brasil, tradings têm recorrido ao judiciário obtendo decisões favoráveis pautadas pela cláusula contratual de washout, ou seja, indenização a ser paga pelo agricultor pelas perdas e danos ocasionados pela não entrega à trading de produto contratado antes da elevação das cotações6.
A inflação de alimentos, contaminada pela inflação da energia e pelo conflito euroasiático, assola todas as nações, alcançando também o café, que nos últimos 12 meses exibe majoração próxima de 17% na Bolsa de Nova York (Contrato C)7. Estendendo o período, nos últimos 18 meses essa majoração ultrapassa os 80%, isso sem contabilizar os prêmios para os produtos de qualidade superior que, para o caso do produto guatemalteco, acrescenta outros 60% sobre a base do contrato8.
Sob clima mais incerto com incremento do risco nas transações (quebra de contratos, estoques minguados, oferta escassa com risco de picos de desabastecimento) ampliam-se os limites para a volatilidade de preços favorecendo o incremento da especulação nos mercados futuros de mercadorias, inclusive commodities agrícolas. O esforço pretérito de coordenação das cadeias agroalimentares retrocede, pois sob um ambiente de negócios desordenado (esse é um dos reflexos da inflação) há perda de visibilidade futura para as transações (refletindo-se em oportunidades – festa - para os especuladores), produzindo o FLUXO TENSO ou, conceitualmente, aquilo que se denominou de anarquia de mercado que representa, essencialmente, o fracasso da autorregulação, componente essencial no planejamento operacional daqueles que atuam na economia real.
*Celso Luis Rodrigues Vegro - Eng. Agr., MS, Pesquisador Científico do IEA - celvegro@iea.sp.gov.br
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1 Estatísticas de mercado da SUSEP, em 2021, indicam que as seguradoras absorveram aproximadamente R$4 bilhões em prejuízos com as apólices rurais. Se contabilizarmos as despesas administrativas e comerciais que se acrescentam a gestão dos negócios esse montante pode superar os R$7 bilhões.
2 Por essa razão é imprescindível que o país constitua o fundo de catástrofe para oferecer cobertura para as resseguradoras que ao fim e ao cabo suportam as perdas das cias de seguro. Ver: https://www2.susep.gov.br/menuestatistica/SES/premiosesinistros.aspx?id=54
3 No levantamento de maio de 2022 da safra de café da CONAB estima-se que a colheita de arábica atingirá 35,7 milhões de sacas. Ver: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cafe
4 Ver: https://cncafe.com.br/projecoes-divergentes-para-a-safra-de-2022-2023-geram-especulacao-no-mercado-e-prejudicam-produtor/
5 Ver: https://apps.fas.usda.gov/psdonline/circulars/coffee.pdf
6 BACELO, J. Judiciário condena produtores rurais a indenizar empresa trading. Jornal Valor Econômico, 12/07/2022. Caderno E1.
7 Disponível para assinantes em:
https://ciagri.iea.sp.gov.br/BancoDeDados/PrecosDiarios/Internacional
8 Ver: https://www.redepeabirus.com.br/redes/form/post?topico_id=98858